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Brasileira que trabalhou no governo americano diz que é 'imperdoável' uso de cloroquina sem cuidados

Acadêmica Luciana Borio ajudou a construir um programa de biodefesa que prevê, entre outras coisas, a preparação para enfrentar uma pandemia

Foto do author Beatriz Bulla
Por Beatriz Bulla , CORRESPONDENTE e WASHINGTON
Atualização:

Luciana Borio é brasileira, mas dedicou boa parte de sua vida profissional e acadêmica à construção de um programa de biodefesa nos Estados Unidos que prevê, entre outras coisas, a preparação para enfrentar uma pandemia. Nos últimos três anos, ela assistiu a um esvaziamento do sistema contra epidemias que ajudou a colocar de pé. "Houve uma mudança de direção. Perdemos tempo nesses três anos", disse, em entrevista ao Estado na semana em que os EUA superaram a marca de 76 mil mortos, maior número de fatalidades ocasionadas pelo coronavírus no mundo.

A brasileira Luciana Borio Foto: USA Senate

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Ela começou a trabalhar no governo americano na presidência de George W. Bush depois do atentado às Torres Gêmeas, e de lá para cá assumiu cargos de liderança nos governos Barack Obama e Donald Trump. Foi diretora para preparação médica e de biodefesa do Conselho de Segurança Nacional, que assessora a Casa Branca - órgão que foi extinto no governo Trump. 

Também ex-cientista chefe do FDA, agência reguladora de drogas e alimentos nos EUA, foi uma das vozes mais críticas à adoção da cloroquina como tratamento para a covid-19 antes de comprovação científica de sua eficácia. "Partiu meu coração ver como esse assunto foi tratado", afirma. 

"Não é a minha preferência ter políticos fazendo propagandas de medicamentos para o público, porque não são treinados para isso, mas é imperdoável ter membros da comunidade científica usando essas drogas sem os cuidados devidos nos pacientes", afirma. Ela rebate o argumento de que os internados em situação crítica "não tem nada a perder" e portanto valeria a pena usar tratamentos não comprovados: "Isso pode fazer mal para pacientes que já estão em uma posição vulnerável. Mesmo os mais doentes têm muito a perder com mau uso de medicamentos.".

Segundo ela, o governo federal precisa coordenar esforços com o setor privado e com os Estados para o combate à pandemia, o que não tem acontecido nos EUA. No ano passado, ela saiu do setor público para a In-Q-Tel, uma empresa de investimento estratégico em tecnologia para defesa e segurança nacional.

"Vamos acertar, eventualmente, mas não desde o começo", afirma Luciana sobre o relaxamento das medidas de abertura. Como um recado ao Brasil, ela diz que "não é possível vencer o vírus sem a garantia de que ações são fundamentadas na ciência". 

A sra. entrou no governo dos EUA como parte do grupo que tinha como missão preparar a biodefesa americana. Como os EUA organizaram a prevenção de epidemias de lá para cá?

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Trabalhei para governos Bush, Obama e Trump, como servidora pública. Em todos os governos as pessoas do Departamento de Saúde construíam programas para complementar os que já havia sido elaborado por quem as antecedeu na liderança, independentemente da política. Nos último três anos, porém, não o governo em geral, mas aquele que lidera essa área no governo Trump, perdeu um pouco o foco na saúde pública e centrou esforços na defesa contra armas biológicas.Houve uma erosão na preparação para epidemias. 

Por que houve essa mudança de foco dentro do governo?

É uma pergunta que vamos ficar se fazendo por vários anos. Claramente muita gente vai falar que foi uma falha do governo em geral. Não é assim que eu vejo. Existia uma pessoa responsável no Departamento de Saúde para lidar com isso e essa pessoa, por razão ideológica, mudou a prioridade. O Washington Post publicou uma reportagem sobre isso, apontando que a arma biológica virou o foco por ideologia.

O que precisaria ter sido feito e não foi? E o quanto isso evitaria que se chegasse à situação atual, com 76 mil mortos em razão do coronavírus nos EUA?

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Houve uma mudança de direção. Perdemos tempo nesses três anos, não demos continuidade à preparação contra pandemias, sendo ela uma prioridade muito grande de todas as pessoas de governos que precederam. Muita coisa boa foi feita através dos anos, mas são coisas que precisam de continuidade e ampliação. Há muita coisa que precisava ter sido feita nos últimos três anos e ainda terá que ser feita. Precisamos ver como faremos melhor da próxima vez e também agora, porque isso vai demorar muitos meses, talvez tenhamos anos com o problema de coronavírus de maneira global.

O que os EUA perderam, na prática, nesse tempo?

Sabíamos que não tínhamos o suficiente em equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde, para uma pandemia. O que precisava ter acontecido? Ou o governo federal precisaria ter assumido responsabilidade de um fornecimento adequado ou precisaria ter comunicado isso muito claramente aos Estados. Este não é um problema federal ou estadual, é um problema nacional. É importante ter clareza sobre o que está disponível. 

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Não adianta também ter vacina para produzir se não houver depois como administrar a vacina por falta de seringas e de agulhas. Todo esse planejamento é muito importante, apesar de não ser algo que recebe atenção como um programa contra armas biológicas. 

Também não investimos o suficiente em diagnóstico. Em geral, o Centro de Controle de Doenças (CDC) costuma fazer um trabalho muito sério e importante para desenvolver diagnóstico durante as primeiras semanas de uma epidemia. Tivemos dois baques desta vez. Primeiro, o CDC teve problema de qualidade com o teste. E mesmo que tivessem feito tudo certo não seria o suficiente sem o apoio do setor privado. O setor privado demorou muito para se engajar - não por falha de ninguém, mas simplesmente porque nunca foi um grande objetivo dos programas o de preparar o setor privado para se envolver desde o início. Incorporar o setor privado cedo é muito importante, pela capacidade de desenvolver os testes e colocar onde os pacientes precisam, nos hospitais, clínicas até mesmo nas farmácias. 

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Existe coordenação por parte do governo federal? Assistimos vários desencontros nesta pandemia entre governos estaduais e federais, também entre o setor privado com a Casa Branca. 

Falta muito para alcançar essa coordenação ideal. Nos EUA, a inovação e capacidade de responder estão no setor privado. As vacinas são produzidas pelo setor privado. Mas o governo tem um papel muito importante de coordenação e estamos vendo agora o quão importante é esse papel. 

O rastreamento do contágio se faz há muitos anos em saúde pública e requer esforço de pessoal. Nunca foi usado para uma pandemia que tem escala e velocidade de contágio tão altas, muito maior do que as anteriores. Existe o debate sobre uso de tecnologia para ajudar nesse trabalho. Poderíamos usar tecnologia de telefone celular para ajudar a investigar e notificar de maneira anônima, por exemplo, quem pode ter tido contato com um infectado. Isso é uma proposta muito atraente, mas não há uma coordenação central para avaliar como incorporar essa tecnologia de maneira a respeitar a privacidade e assegurar que será usada só para a saúde pública. 

E quem irá selecionar as melhores tecnologias? Esse tipo de diálogo necessita de uma coordenação federal. Governo e setor privado não estão em competição, eles têm que ser complementares. O setor privado, nem Google, nem Apple, vão poder tomar esse papel de coordenar saúde pública com governos locais.

Parte dos Estados americanos começaram um processo de reabertura. Nós temos as condições necessárias para relaxar o isolamento? 

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Temos que ter mais testes para fazer o rastreamento de contágio, identificar quem foi exposto e tirar de circulação. O isolamento atinge todo mundo. Se conseguirmos mais diagnóstico, iremos manter em casa só quem precisa. É essencial isolar quem está transmitindo e é muito difícil controlar uma pandemia quando boa parte das pessoas não tem sintoma nenhum. Então, mesmo que melhorarmos na área de teste, isolamento e rastreamento, nós não vamos poder voltar ao normal até ter uma vacina, porque existe esse grande número de pessoas que não terá sintoma algum e estará transmitindo. Uma certa distância social vai ser importante até ter a vacina. 

Avaliação interna do governo federal americano é de que o país pode registrar 3 mil mortes diárias por dia em junho, após a reabertura em maio. O processo de fim do isolamento está sendo feito da maneira bem planejada ou afobada?

Depende do lugar. Alguns lugares estão fazendo de maneira mais responsável e os lugares que não estão vão entrar em um ciclo de abertura e fechamento. A população não vai tolerar um grande número de fatalidades nas suas comunidades. O fechamento não é um processo de cura, é um paliativo. Nós sabemos disso. Vamos abrir e fechar, abrir e fechar, de acordo com o avanço da epidemia em cada lugar. Vamos acertar, eventualmente, mas não desde o começo. Precisamos continuar a fazer um esforço muito grande para aumentar o diagnóstico, para poder realmente isolar os infectados.

Nem todo lugar fará do mesmo jeito. Vemos que alguns governos são mais impacientes para retomar a atividade. Tenho convicção de algumas coisas: cinemas, lotações em lugares fechados, não serão abertos agora. Há informação mostrando que a maior parte da transmissão acontece em ambientes fechados, não externos. Teremos que nos adaptar conforme tivermos informações e, sem um órgão de coordenação central, cada lugar vai fazer o que acha melhor. Os lugares que fizerem de maneira correta podem se tornar os modelos para o restante.

Dos estudos de tratamentos ou vacina, o que tem visto como mais promissor?

O estudo sobre o Remdesivir foi randomizado, seriamente feito e cientificamente muito correto. Claramente não é a solução, porque é uma droga intravenosa, que tem toxicidade. Para mim, o mais interessante serão os anticorpos monoclonais, esses anticorpos podem ser usado não somente para tratamento, mas também para prevenção em pessoas de alto risco, antes mesmo de se ter a vacina. Claro que os testes clínicos precisam ser feitos, mas é uma promessa muito grande de proteger as pessoas de alto risco e servir como uma ponte até a vacina.

Políticos como os presidentes Trump e Bolsonaro defenderam o uso da cloroquina. O debate sobre o remédio foi tratado publicamente de uma forma responsável?

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Partiu o meu coração ver como isso foi tratado. O que me deixou muito surpresa foi o número de estabelecimentos renomados que estavam usando o produto mesmo sem informação científica confiável. Isso foi surpreendente. Uma coisa é um político dizer coisas baseadas em promessas, mas eu perdoo muito menos a comunidade científica e médica. Não é a minha preferência ter políticos fazendo propagandas de medicamentos para o público, porque não são treinados para isso, mas para mim é imperdoável ter membros da comunidade científica usando essas drogas sem os cuidados devidos nos pacientes. Isso pode fazer mal para pacientes que já estão em uma posição vulnerável, nós sabemos muito pouco sobre isso. Pacientes, mesmo os mais doentes, têm muito a perder com mau uso de medicamentos e precisamos ser muito cuidadosos para não fazer essa situação pior. 

É um medicamento que tem toxicidade, especialmente nesse tipo de paciente doente. É uma droga que apesar de trazer promessas no laboratório ou em modelos animais ainda não teve benefícios comprovados na clínica. Para mim, isso tem muito peso. 

Há pouca razão para a comunidade científica adotar isso tão rapidamente.

Como avalia a resposta do Brasil à pandemia?

Vemos países que têm sido modelo de como lidar com isso, como a Alemanha. 

É importante prestar atenção aos médicos e à comunidade científica para proteger os cidadãos, porque esse é o maior ativo do país. Proteger as pessoas não é apenas a coisa certa a fazer, é também do interesse do país fazer isso. Precisamos fazer tudo o possível para minimizar o dano desse vírus. No Brasil já é mais complicado em razão das áreas com alta densidade populacional e um sistema de saúde e de infraestrutura fragilizado. Cada país precisa achar o que funciona, mas não pode perder de vista sua meta: proteger e salvar a vida das pessoas.

Você se preocupa que o Brasil não esteja nesse caminho?

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O mais importante é que a resposta seja cientificamente forte e tecnicamente certa. É comum que considerações políticas sejam apontadas, e algumas vezes elas têm impacto em qual opção os líderes adotarão entre todas as oferecidas, mas todas elas precisam ser técnicas. Não é possível vencer o vírus sem a garantia de que as ações tomadas são fundadas na ciência e na técnica.

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