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No Recife, médica fala em 'geração de sequelados' pelo zika

Problema da microcefalia seria de dimensões ainda maiores do que as consequências do uso da talidomida, que chegou a deixar 10 mil bebês com má-formação

Foto do author Edmundo Leite
Por Ligia Formenti e Edmundo Leite
Atualização:

RECIFE - A chefe do serviço de infectologia pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, Angela Rocha, não pensa duas vezes ao dizer: a epidemia de nascimentos de bebês com microcefalia que o Nordeste enfrenta é um problema de dimensões ainda maiores do que o registrado com a talidomida. “Estamos assistindo ao surgimento de uma geração de sequelados. O impacto será gigantesco”, diz.

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A talidomida é um medicamento desenvolvido na década de 1950 que por anos foi usado por gestantes para combater enjoos. A droga, no entanto, interrompia o crescimento de membros dos fetos. Como consequência, cerca de 10 mil bebês tiveram má-formação. 

Angela avalia que a epidemia de microcefalia vai exigir uma série de adaptações nos serviços. Ela não tem dúvida de que o número de neuropediatras terá de ser ampliado e vagas nos serviços de especialidade – já tão difíceis de serem obtidas – terão de ser garantidas.

No Oswaldo Cruz, por exemplo, mais especialistas deverão ser recrutados. “Não é uma tarefa fácil ou rápida”, ressalta Angela. E reconhece que nos primeiros dias até ela ficou muito abalada emocionalmente com a situação dos bebês. “Todos nós do serviço ficamos tocados.” A maior angústia é não ter a resposta para várias das questões levantadas pelas famílias.

Crianças com microcefalia apresentam um perímetro cefálico menor que 32 centímetros – conforme protocolo internacional que passou a ser seguido pelo País. O cérebro desses bebês também apresenta tamanho reduzido. A má-formação pode ser provocada por problemas genéticos, exposição da gestante a drogas ou por transmissão vertical de vírus como herpes, HIV, citomegalovirus, 

Nas síndromes que têm como causa doenças infecciosas, bebês apresentam calcificações no cérebro. “Nessas áreas, o cérebro não se expande, obrigando outras áreas a tentarem se desenvolver”, diz Angela. Essas alterações fazem com que sejam altos os riscos das crianças apresentarem convulsões. Os bebês também têm maior risco de apresentar problemas na visão, auditivos e locomotores. 

Mães com bebês com microcefalia procuram atendimento no Hospital Universitário Oswaldo Cruz, noRecife Foto: Léo Caldas/Estadão

Isso significa que esses pacientes precisam ser acompanhados por oftalmologistas, otorrinos e fisioterapeutas, Além de serviços públicos terem de se adaptar e algumas regras precisam ser estabelecidas para garantir que pais e cuidadores não tenham uma queda muito significativa nos rendimentos. Isso porque a rotina de tratamento desses bebês é intensa. Na primeira fase, quando ainda não completaram 3 meses, o ideal é que façam exercícios de terapia ocupacional, mais tarde fisioterapia e neurologia. 

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Pais terão de levá-los às consultas muita vezes durante o horário de trabalho. “O impacto será emocional, econômico e social”, disse Angela

Já o pesquisador Rivaldo Cunha, da Fiocruz, afirma que o País está diante de uma tragédia sanitária atualmente: a circulação simultânea de três vírus transmitidos pelo Aedes aegypti (considerando dengue e chikungunya). 

Alerta. Há três semanas, diante do problema, o Ministério da Saúde decretou emergência sanitária de caráter nacional. Nesta semana, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um alerta para que todos os países aprimorem seu sistema de vigilância para acompanhar a evolução do vírus zika, relacionado especificamente ao aumento de casos da doença. 

CASO TALIDOMIDA FEZ AUMENTAR RIGOR AO APROVAR REMÉDIOS

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Um pronunciamento do presidente americano John Kennedy alarmou o mundo em 2 de agosto de 1962. Não se tratava de nada relacionado aos soviéticos e à crise dos mísseis que eclodiria dois meses depois. O inimigo desta vez atuava livremente dentro de milhares de lares nos Estados Unidos, consumido por mulheres em busca de conforto contra os enjoos da gravidez: a talidomida. 

Naquele dia, Kennedy fez um apelo para que as mães se desfizessem de todos os frascos de comprimidos do remédio e confirmou-se o que era apontado há tempos. A talidomida era causa de um boom de nascimento de crianças com a má-formação congênita focomelia, que afetava sobretudo braços e pernas. 

Criado como calmante em 1954 pelo laboratório alemão Grunenthal, o medicamento era vendido em todo mundo sob vários nomes comerciais. No Brasil, as marcas Sedalis, Sedin e Slip existiam desde o fim da década de 1950 e começaram a ser recolhidas após a repercussão do pronunciamento de Kennedy, enquanto nos EUA desde novembro do ano anterior a substância estava vetada pelo Departamento de Saúde. O caso foi um marco no endurecimento dos testes para a aprovação de novos medicamentos. 

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Enquanto isso, muitas americanas grávidas passaram a viajar para a Suécia para realizar abortos, com medo de gerar crianças deficientes. Mesmo com a comprovação dos danos do remédio, a justiça americana não autorizou os abortos. O Vaticano também anunciou que não aprovava a interrupção da gravidez por esse motivo. 

Em Liège, na França, uma mãe que matou a filha que nasceu com problemas decorrentes do uso do remédio foi absolvida por um júri. Estima-se que cerca de 10 mil crianças nasceram em todo o mundo com sequelas provocadas pela substância, que passou a ser aprovada como medicamento controlado, pois é muito eficiente em tratamentos de doenças como a hanseníase. Nos anos 70, houve mobilização por indenizações e reparos. No Brasil, no começo dos anos 80 conseguiu-se estabelecer pensão vitalícia para cerca de 100 pessoas identificadas como vítimas.

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