RECIFE - A chefe do serviço de infectologia pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, Angela Rocha, não pensa duas vezes ao dizer: a epidemia de nascimentos de bebês com microcefalia que o Nordeste enfrenta é um problema de dimensões ainda maiores do que o registrado com a talidomida. “Estamos assistindo ao surgimento de uma geração de sequelados. O impacto será gigantesco”, diz.
A talidomida é um medicamento desenvolvido na década de 1950 que por anos foi usado por gestantes para combater enjoos. A droga, no entanto, interrompia o crescimento de membros dos fetos. Como consequência, cerca de 10 mil bebês tiveram má-formação.
Angela avalia que a epidemia de microcefalia vai exigir uma série de adaptações nos serviços. Ela não tem dúvida de que o número de neuropediatras terá de ser ampliado e vagas nos serviços de especialidade – já tão difíceis de serem obtidas – terão de ser garantidas.
No Oswaldo Cruz, por exemplo, mais especialistas deverão ser recrutados. “Não é uma tarefa fácil ou rápida”, ressalta Angela. E reconhece que nos primeiros dias até ela ficou muito abalada emocionalmente com a situação dos bebês. “Todos nós do serviço ficamos tocados.” A maior angústia é não ter a resposta para várias das questões levantadas pelas famílias.
Crianças com microcefalia apresentam um perímetro cefálico menor que 32 centímetros – conforme protocolo internacional que passou a ser seguido pelo País. O cérebro desses bebês também apresenta tamanho reduzido. A má-formação pode ser provocada por problemas genéticos, exposição da gestante a drogas ou por transmissão vertical de vírus como herpes, HIV, citomegalovirus,
Nas síndromes que têm como causa doenças infecciosas, bebês apresentam calcificações no cérebro. “Nessas áreas, o cérebro não se expande, obrigando outras áreas a tentarem se desenvolver”, diz Angela. Essas alterações fazem com que sejam altos os riscos das crianças apresentarem convulsões. Os bebês também têm maior risco de apresentar problemas na visão, auditivos e locomotores.
Isso significa que esses pacientes precisam ser acompanhados por oftalmologistas, otorrinos e fisioterapeutas, Além de serviços públicos terem de se adaptar e algumas regras precisam ser estabelecidas para garantir que pais e cuidadores não tenham uma queda muito significativa nos rendimentos. Isso porque a rotina de tratamento desses bebês é intensa. Na primeira fase, quando ainda não completaram 3 meses, o ideal é que façam exercícios de terapia ocupacional, mais tarde fisioterapia e neurologia.
Pais terão de levá-los às consultas muita vezes durante o horário de trabalho. “O impacto será emocional, econômico e social”, disse Angela
Já o pesquisador Rivaldo Cunha, da Fiocruz, afirma que o País está diante de uma tragédia sanitária atualmente: a circulação simultânea de três vírus transmitidos pelo Aedes aegypti (considerando dengue e chikungunya).
Alerta. Há três semanas, diante do problema, o Ministério da Saúde decretou emergência sanitária de caráter nacional. Nesta semana, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um alerta para que todos os países aprimorem seu sistema de vigilância para acompanhar a evolução do vírus zika, relacionado especificamente ao aumento de casos da doença.
CASO TALIDOMIDA FEZ AUMENTAR RIGOR AO APROVAR REMÉDIOS
Um pronunciamento do presidente americano John Kennedy alarmou o mundo em 2 de agosto de 1962. Não se tratava de nada relacionado aos soviéticos e à crise dos mísseis que eclodiria dois meses depois. O inimigo desta vez atuava livremente dentro de milhares de lares nos Estados Unidos, consumido por mulheres em busca de conforto contra os enjoos da gravidez: a talidomida.
Naquele dia, Kennedy fez um apelo para que as mães se desfizessem de todos os frascos de comprimidos do remédio e confirmou-se o que era apontado há tempos. A talidomida era causa de um boom de nascimento de crianças com a má-formação congênita focomelia, que afetava sobretudo braços e pernas.
Criado como calmante em 1954 pelo laboratório alemão Grunenthal, o medicamento era vendido em todo mundo sob vários nomes comerciais. No Brasil, as marcas Sedalis, Sedin e Slip existiam desde o fim da década de 1950 e começaram a ser recolhidas após a repercussão do pronunciamento de Kennedy, enquanto nos EUA desde novembro do ano anterior a substância estava vetada pelo Departamento de Saúde. O caso foi um marco no endurecimento dos testes para a aprovação de novos medicamentos.
Enquanto isso, muitas americanas grávidas passaram a viajar para a Suécia para realizar abortos, com medo de gerar crianças deficientes. Mesmo com a comprovação dos danos do remédio, a justiça americana não autorizou os abortos. O Vaticano também anunciou que não aprovava a interrupção da gravidez por esse motivo.
Em Liège, na França, uma mãe que matou a filha que nasceu com problemas decorrentes do uso do remédio foi absolvida por um júri. Estima-se que cerca de 10 mil crianças nasceram em todo o mundo com sequelas provocadas pela substância, que passou a ser aprovada como medicamento controlado, pois é muito eficiente em tratamentos de doenças como a hanseníase. Nos anos 70, houve mobilização por indenizações e reparos. No Brasil, no começo dos anos 80 conseguiu-se estabelecer pensão vitalícia para cerca de 100 pessoas identificadas como vítimas.