O DNA da biodiversidade

Com base em análises genéticas, cientistas estão aprendendo a diferenciar espécies com mais precisão e rapidez, ajudando a tornar as estratégias de conservação mais eficientes

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Por Herton Escobar
Atualização:

 

Não faz muito tempo, pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e do Instituto Max Planck, na Alemanha, revelaram que os elefantes das savanas e das florestas africanas são duas espécies distintas e não duas variedades de uma mesma espécie, como se pensava. O estudo foi baseado em evidências genéticas, comparando amostras do DNA de elefantes modernos da África e da Ásia com as de seus parentes extintos, mamutes e mastodontes, extraídas de fósseis.

 

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Os resultados, publicados em dezembro na revista PLoS Biology, mostraram que os dois elefantes da África, apesar de muito semelhantes morfologicamente, são tão diferentes geneticamente entre si quanto os elefantes modernos da Ásia são dos extintos mamutes, por exemplo. Só assim foi possível resolver um longo debate sobre a história evolutiva desses animais e colocar cada elefante no seu devido galho da árvore genealógica da vida.

 

Agora, se foi tão difícil fazer essa diferenciação entre dois elefantes de vários metros e várias toneladas, imagine fazer o mesmo entre dois peixinhos de alguns centímetros e alguns gramas que vivem enfiados em recifes de corais, vários metros abaixo da superfície, espalhados por centenas de ilhas e separados por milhares de quilômetros de oceano. Esse é o tamanho do desafio que cientistas enfrentam para tentar entender e classificar a gigantesca biodiversidade de pequenos organismos que habitam as águas salgadas do Triângulo dos Corais, no Sudeste Asiático.

 

A região, como mostrou a reportagem anterior desta série, abriga mais espécies de vida marinha que qualquer outro lugar do planeta. Os cientistas já sabem disso há algum tempo, mas ainda estão longe de conseguir descrever ou explicar essa biodiversidade em detalhes. Onde termina uma espécie e onde começa outra? Aquele peixinho de uma ilha na Indonésia que parece com aquele outro peixinho de uma ilha nas Filipinas, mas que tem uma coloração um pouco diferente, é uma outra espécie, ou apenas uma variação morfológica da mesma espécie - a exemplo dos seres humanos, que, apesar de serem todos da mesma espécie (Homo sapiens), podem ser morfologicamente tão variados quanto um aborígene australiano e uma modelo alemã?

 

 

Historicamente, a ciência de descrever e classificar espécies (chamada taxonomia) foi baseada quase que exclusivamente na morfologia - ou seja, na análise e comparação de características físicas dos organismos. O que já não era fácil. Agora, com o avanço das técnicas de estudo molecular, cientistas estão descobrindo que a diversidade da vida na Terra é ainda maior do que se pensava. O DNA funciona como um híbrido de máquina do tempo e microscópio, permitindo aos pesquisadores enxergar diferenças (ou semelhanças) evolutivas que não são perceptíveis a olho nu. O que parecia ser apenas uma espécie revela ser duas, três ou até mais. Na taxonomia moderna, as aparências enganam. E muito.

 

"A morfologia levanta uma série de questões e possibilidades, mas nem sempre é capaz de resolvê-las sozinha", diz o professor Paul Barber, do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que trabalha com essas questões no Triângulo dos Corais há mais de dez anos. "Muitas coisas que parecem iguais são, na verdade, diferentes. Assim como muitas coisas que parecem diferentes são iguais, do ponto de vista genético."

 

São as chamadas espécies "crípticas", que vivem escondidas geneticamente dentro da variabilidade morfológica de outras espécies. Um problema do tamanho de um elefante no caso de organismos marinhos, em que indivíduos de uma mesma espécie podem apresentar uma variabilidade enorme de cores, formatos e tamanhos. É aí que a genética começa a fazer a diferença.

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O Estado acompanhou durante dois meses o esforço de um grupo de professores e estudantes do Centro de Estudos sobre Biodiversidade da Indonésia (IBRC, em inglês) para extrair, sequenciar e comparar amostras de DNA de vários peixes do triângulo. Alguns considerados da mesma espécie e outros, de espécies diferentes. Em todos os casos, as perguntas eram as mesmas: o que é diferente e o que é igual?

 

Na hora de apresentar os resultados, surpresas. Um dos grupos encontrou uma diferença genética de 3% entre dois peixes da espécie Pseudochromis perspicillatus - um da ilha de Morotai, com a coloração branca típica da espécie, e outro da ilha de Komodo, com uma coloração amarelada. Com base numa diferença tão pequena, os alunos concluíram: "São a mesma espécie." Até que o professor Barber levantou o braço e explicou que 3% pode ser uma diferença enorme do ponto de vista evolutivo, dependendo do gene estudado. Três vezes maior que a diferença acumulada entre homens e chimpanzés, por exemplo. "É muito provável que sejam espécies diferentes", declarou Barber, para a felicidade e surpresa dos alunos.

 

A diferença genética entre indivíduos de uma mesma espécie, tipicamente, é menor que 1% (mesmo entre um aborígene australiano e uma modelo alemã).

 

Aplicabilidade. Não se trata só de uma curiosidade científica. A capacidade de diferenciar espécies tem implicações diretas no gerenciamento de estoques pesqueiros e na elaboração de estratégias eficientes para a conservação da biodiversidade. Especialmente na hora de argumentar a favor da criação de áreas protegidas ou contra a implementação de empreendimentos potencialmente nocivos àquelas espécies. "As informações genéticas são absolutamente cruciais para entendermos o que está acontecendo debaixo d’água", diz o biólogo Mark Erdmann, da ONG Conservação Internacional (CI), que trabalha no triângulo há 20 anos e foi quem coletou os espécimes usados pelo IBRC.

 

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Além de diferenciar espécies, as técnicas moleculares permitem calcular níveis de diversidade genética e mapear rotas de fluxo gênico entre populações de uma mesma espécie, igualmente essenciais para a sustentabilidade dos esforços de conservação. "A diversidade é a força motriz da evolução. Quanto menor a variabilidade genética, menor é a capacidade de uma espécie se adaptar a mudanças ambientais e maior a probabilidade de ela ser extinta", explica o professor Barber.

 

Uma técnica curiosa usada nesse tipo de pesquisa é a amostragem genética de plâncton, o estágio larval pelo qual a maioria dos organismos marinhos inicia sua vida. Analisando o DNA do plâncton que flui pelas correntes marinhas e comparando-o com o DNA de organismos adultos de diferentes regiões, é possível traçar mapas de onde essas larvas (e a diversidade genética contida nelas) estão sendo geradas, para onde elas estão indo e as rotas que utilizam para chegar lá.

 

"Sabendo disso, podemos planejar a localização das áreas protegidas com muito mais eficácia, garantindo a conectividade entre elas", afirma Muhammad Erdi Lazuardi, aluno do IBRC e coordenador de Ciência e Monitoramento da CI na Indonésia. Os pontos cruciais para a conservação são os de origem da diversidade. Caso contrário, seria como tentar preservar a espécie humana protegendo só os hospitais e não as maternidades.

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Fazer esse rastreamento do plâncton pela taxonomia clássica seria inviável, já que as larvas, além de minúsculas, geralmente não se parecem em nada morfologicamente com suas formas adultas. Em vez disso, é possível identificar as larvas somente pelos seus genes. Nesse processo, Barber já "descobriu" várias espécies que nunca viu na vida. São sequências de DNA não identificadas, que não se encaixam com as de nenhuma espécie descrita pela ciência. "Não sabemos como são essas espécies na vida adulta, mas sabemos que elas existem, porque suas larvas estão no plâncton", diz o biólogo. "Elas estão por aí, em algum lugar, esperando para serem descobertas."

 

"Talvez não sejamos capazes de descrever tudo, mas com a genética temos uma visão muito mais completa da real biodiversidade dos oceanos", resume o biólogo Chris Meyer, do Instituto Smithsonian.

 

MORFOLOGIA E GENÉTICA ESTÃO APRENDENDO A ANDAR JUNTAS

 

A relação entre a morfologia da taxonomia clássica e os genes da biologia molecular nem sempre foi das mais amigáveis. A ideia de que uma espécie pode ser descrita apenas por uma sequência de letras A, T, C e G soa exageradamente reducionista - e um tanto deselegante - para os milhares de cientistas e naturalistas que, ao longo dos séculos, dedicaram suas vidas a descrever a vida na Terra como a enxergamos, em todo o seu esplendor de cores e formatos.

 

 

Historicamente, quase todas as espécies foram definidas dessa forma, com base num criterioso estudo das características morfológicas de suas partes. E não num "código de barras genético" que só pode ser visto na tela de um computador.

 

À medida que a degradação ambiental avança muito mais rapidamente que a ciência, porém, morfologia e genética estão aprendendo a caminhar de mãos dadas para evitar que mais espécies desapareçam antes mesmo de sabermos que elas existem.

 

"O problema é que os métodos tradicionais são lentos demais", diz a bióloga Nancy Knowlton, do Instituto Smithsonian. Ela cita como exemplo os inventários de biodiversidade que estão sendo feitos no Triângulo dos Corais. Em duas expedições de campo recentes, realizadas pelo Centro de Estudos sobre Biodiversidade da Indonésia (IBRC), foram coletados 2,2 mil espécimes só de crustáceos. "Se tentássemos identificar tudo isso com base nos métodos tradicionais, levaria anos", explica Nancy. "Até lá, esses ecossistemas já poderão ter desaparecido."

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Pelo método tradicional, cada espécime teria de ser analisado por um especialista e comparado a amostras de referência em museus. Pelo método genético, os cientistas podem sequenciar milhares de amostras simultaneamente. Basta uma bituca de nadadeira ou uma perninha de camarão para extrair o DNA. Tudo automatizado. As sequências obtidas das amostras são, então, comparadas a sequências de referência disponíveis em bancos de dados na internet.

 

"Todo organismo tem sua identidade inscrita no seu DNA", afirma o biólogo Chris Meyer, também do Instituto Smithsonian. "Queremos medir biodiversidade como se mede temperatura. E para isso temos de reduzi-la a algo completamente digital, que caiba dentro de um computador", completa ele, que, além de colaborar com o IBRC no Triângulo dos Corais, coordena um projeto para identificar geneticamente todas as espécies da ilha de Moorea, na Polinésia Francesa.

 

Ciência integrada. Num futuro talvez não muito distante, cientistas esperam poder identificar espécies quase que instantaneamente, tal qual se identifica o preço de um produto no supermercado, com um leitor portátil de DNA. O que não significa que a morfologia deixará de ser importante.

 

Uma boa descrição de espécie, hoje em dia, tem de conter uma combinação de características morfológicas, genéticas e ecológicas. "Usar apenas a genética é tão errado quanto usar só uma ou outra característica morfológica", diz o especialista brasileiro Antonio Solé-Cava, diretor do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

"O importante é fazer - como no caso dos elefantes - um estudo integrado, em que dados genéticos são usados para analisar se as espécies estão ou não evoluindo independentemente, enquanto estudos morfológicos procuram características diagnósticas que permitam identificá-las de maneira simples e consistente e estudos ecológicos procuram entender como cada uma dessas espécies interage com as demais em seu meio", afirma o especialista.

 

Solé-Cava foi quem publicou, em 1983, o primeiro estudo brasileiro nessa área, utilizando características genéticas para mostrar que o que se pensava ser duas variedades de uma espécie de cação-anjo (Squatina argentina), eram, na verdade, duas espécies diferentes, uma com espinhos no dorso e a outra, sem. Um casamento perfeito entre genética e morfologia.

 

A nova espécie foi batizada de Squatina oculta. E ambas, agora, estão na Lista Vermelha de espécies ameaçadas da União Mundial para a Natureza (IUCN).

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INDONÉSIA BUSCA ELEVAR SUA PRODUÇÃO CIENTÍFICA

 

O gráfico de produção do conhecimento sobre a biodiversidade marinha parece estar errado. A região mais estudada pelos cientistas é a Grande Barreira de Corais da Austrália, seguida pelo Caribe. Enquanto que a Indonésia, país com a maior área e a maior biodiversidade de recifes de coral do mundo, aparece apenas em terceiro lugar.

 

"As estatísticas científicas não combinam com as estatísticas de biodiversidade", diz o pesquisador Paul Barber, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, principal responsável pela criação do Centro de Pesquisas sobre Biodiversidade da Indonésia (IBRC), no ano passado, em Bali.

 

Não que a Grande Barreira e o Caribe devessem ser menos estudados, diz Barber. É a Indonésia que está atrasada - e muito - no seu esforço de pesquisa, deixando a maior biodiversidade marinha do planeta desguarnecida do conhecimento científico necessário para a sua conservação. "É como se ninguém estivesse estudando a Amazônia no Brasil", compara a bióloga Nancy Knowlton, do Instituto Smithsonian.

 

Entre 1992 e 2005, para se ter uma ideia, 669 estudos foram publicados sobre a Grande Barreira de Corais da Austrália nas cinco principais revistas internacionais de ciências marinhas. Sobre o Caribe, foram 376. E sobre a Indonésia, apenas 46.

 

"A capacidade da Indonésia de produzir ciência é extremamente limitada, tanto em quantidade quanto qualidade", reconhece Ngurah Mahardika, professor e pesquisador de microbiologia da Universidade Udayana, uma das três instituições locais parceiras do IBRC. As outras são as Universidades Diponegoro e Negeri Papua. Juntas, num período de mais de 40 anos (1968-2009), essas três instituições publicaram 646 trabalhos em revistas científicas indexadas - incluindo todas as áreas do conhecimento. A UCLA, sozinha, publicou mais de 50 mil.

 

Reação. Com a criação do IBRC, Barber espera diminuir um pouco esse abismo de conhecimento, contribuindo não só para a conservação ambiental como também para o desenvolvimento socioeconômico da Indonésia. O centro oferece cursos e infraestrutura laboratorial para o treinamento de alunos e de professores em técnicas de biologia molecular.

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"É o tipo de capacitação que não poderíamos obter em nenhum lugar da Indonésia, simplesmente porque não há pessoas capacitadas para ensinar essas técnicas aqui", diz a coordenadora assistente do IBRC, Dita Cahyani. "Outros laboratórios até têm os equipamentos, mas não o conhecimento necessário para aplicá-los ao estudo da biodiversidade e da conservação."

 

Para o coordenador de programas do centro, Aji Wahyu Anggoro, os benefícios vão muito além da ciência. "Acredito que a educação é o melhor caminho para melhorar a qualidade de vida de um país", diz o jovem pesquisador, confiante.

 

"Talvez os benefícios imediatos não pareçam muito significativos, mas há muitos benefícios indiretos que são ainda mais importantes", argumenta Muhammad Erdi Lazuardi, da ONG Conservação Internacional e aluno do IBRC. Segundo ele, é importante que os indonésios sejam capazes de produzir seus próprios trabalhos, até como forma de fomentar o orgulho nacional e a valorização dos recursos naturais do país. "Hoje é tudo produzido por estrangeiros", diz.

 

A baixa produção científica sobre os recifes da Indonésia - até mesmo por parte de estrangeiros - tem várias razões. Algumas políticas, relacionadas à dificuldade de obtenção de licenças. Outras logísticas e institucionais, ligadas à dificuldade de acesso, infraestrutura precária e falta de recursos humanos. Muito mais fácil fazer pesquisa na Austrália, na Flórida ou nas Bahamas.

 

Segundo Mahardika, há também uma questão cultural. "Eu consigo dinheiro para de instituições estrangeiras para fazer pesquisa, mas não do governo da Indonésia. Aqui, tradicionalmente, só se financia pesquisa aplicada." A pesquisa da biodiversidade é vista como algo muito básico, apesar de suas implicações para a conservação de recursos naturais essenciais para o turismo e a pesca no país. A Indonésia tem mais de 51 mil quilômetros quadrados de recifes de coral, uma área do tamanho do Rio Grande do Norte. "As pessoas ainda não enxergam a importância da conservação. Mas vão enxergar", aposta Mahardika.

 

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