BRASÍLIA - Ainda com imagem afetada pela lentidão durante o enfrentamento da epidemia de Ebola, a Organização Mundial da Saúde (OMS) prepara-se para escolher, em maio, seu novo diretor geral. Pela primeira vez, o processo de escolha será por eleição direta de representantes dos 194 países.
Entre os candidatos que concorrem ao posto, está o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus. Ele esteve no Brasil para costurar o apoio do governo brasileiro a seu nome, num roteiro de campanha na América Latina. Em entrevista ao Estado, ele lançou dúvidas sobre a independência da OMS, defendeu a mudança da forma de financiamento, admitiu haver falhas da coordenação geral do sistema para o combate aos surtos.
“Precisamos nos preparar para próximas epidemias.” Ele atribuiu as dimensões da epidemia de febre amarela no Brasil em parte a problemas geográficos, que dificultariam as taxas de imunização. “É preciso estar sempre melhorando.”Confira abaixo a entrevista:
O modelo de eleição direta não pode colocar em risco a independência dos candidatos?
A independência estaria ameaçada se o número de votantes fosse pequeno. São 194 países votantes, todos têm o mesmo peso. Nesse formato, você não trabalha para ter apoio de apenas alguns países, mas da maioria. Em termos de processo, acho que esse sistema é mais democrático. Além disso, países têm poder de decisão para onde encaminhar o seu voto.
A OMS é independente?
Não acredito que ela seja independente. Por causa do modelo de financiamento, a organização não recebe os recursos suficientes. Nessas condições, a independência pode ser afetada. Maiores doadores podem exercer maior influência
Como superar esse problema?
A OMS precisa fazer algo para melhorar o financiamento. O uso sensato dos recursos é importante. É preciso ter foco. Mas é preciso também aumentar a base de doadores. Quanto menor essa base, maior a dependência. É importante ainda ampliar a contribuição dos estados membros. No passado, esse era o principal mecanismo de obtenção de verba. Atualmente, no entanto, contribuições dos estados representavam 25% das contribuições voluntárias. Se estados membros têm compromisso com a agenda de saúde global, eles devem ampliar os recursos repassados.
Mas como fazer isso diante dos graves problemas financeiros enfrentados no mundo?
Com a falta de financiamento, os custos poderão ser ainda maiores. Veja o surto de Ebola. Ele provocou um impacto social, político, econômico de bilhões de dólares. Se tivéssemos investido previamente, teríamos prevenido gastos gigantescos.
Durante o surto de Ebola, a OMS foi criticada pela lentidão em adotar as medidas para conter o surto. As críticas eram procedentes?
É difícil culpar uma instituição. Foram feitas críticas sobre a coleta de informações, sobre a dificuldade de comunicá-las e por não haver rapidez necessária para responder o problema. Mas em alguns países mesmo autoridades não tinham a informação. Onde a assistência à saúde é fraca, onde o sistema de vigilância é fraco, há dificuldade de manejo de surtos. Precisamos reforçar o sistema para prevenir, detectar e responder epidemias de forma rápida. OMS e seus parceiros precisam reforçar a capacidade dos países . Mas é preciso também reforçar a própria capacidade da OMS.
Por fim, as respostas às epidemias não podem ser geridas por uma única instituição. Outros atores podem estar envolvidos e a OMS exercer o papel de coordenadora. É essencial fortalecer a capacidade em prevenção, detecção e resposta dos países. Quando a capacidade nacional está fortalecida, fica mais fácil dividir informações abrindo espaço portanto a respostas mais rápidas
Ministros da saúde africanos pressionaram representantes de escritórios regionais a não divulgarem informações sobre ebola?
Sim. Mas temos de analisar a relação com o primeiro problema. A própria detecção foi lenta. Por isso, mesmo os próprios países não tinham a informação até muitos terem sido afetados pela doença. Depois houve uma falha na comunicação entre o país e os escritórios regionais e entre escritórios regionais e a sede. Quando os países reportaram, em vez de uma rápida mobilização de auxílio, alguns países impuseram barreiras de viagem. Por causa do receio de que isso acontecesse, eles acabaram refreando a comunicação, por causa do medo das consequências.
A conclusão que se tira para tudo isso é de que para se implementar o código sanitário internacional de forma integral é preciso que países não sejam punidos quando comunicam as ocorrências. Eles devem ser apoiados. E devemos encorajá-los a fazer esse comunicado, porque assim eles vão obter suporte para conter o surto ou epidemia.
Escritórios regionais não deveriam fazer isso?
A capacidade de responder às emergências não é apenas fraca no nível dos países, mas também nos escritórios regionais e no nível central. Com subfinanciamento, o quadro profissional fica desfalcado. Quando países estiverem seguros, eles vão cooperar. Eles devem ainda ser encorajados a fazer a avaliação sobre sua capacidade em prevenção, investigação e resposta. Com isso, falhas serão identificadas e suporte para preencher as lacunas, providenciados. As avaliações podem, no futuro, ser regulares e talvez compulsórias. Essas análises são o único instrumento que temos para verificar as falhas existentes, consertá-las e, assim, nos prepararmos para outras epidemias.
Temos de aprender as lições com desafios que o mundo vem enfrentando. Nós devemos observar o que aconteceu com ebola. É muito comum o ser humano esquecer o que ocorreu.
O sistema de saúde do Brasil é universal, o País é exportador de vacina e mesmo assim ele enfrenta agora a pior epidemia de febre amarela da história. O que explica isso?
Embora a saúde seja universal, há inúmeros desafios a serem enfrentados. Comunidades em áreas isoladas, difíceis de serem alcançadas. Nessas áreas a capacidade do sistema de saúde é menor, sobretudo em virtude da escassez de recursos humanos. Muitos profissionais sentem-se desmotivados a ir morar nessas regiões mais isoladas. Tudo isso colabora para uma taxa de imunização menor do que seria considerada ideal.
O mesmo acontece com o controle de vetor: em alguns pontos, ele é adequado e em outros não. Mesmo quando você tem a cobertura universal de saúde como no Brasil (o que é um motivo de orgulho, por sinal), problemas são encontrados. É preciso constantemente identificá-los e estar sempre melhorando.
Durante o surto de H1N1, houve denúncias sobre conflitos de interesse para a indicação de medicamentos para gripe.
Uma das atribuições mais relevantes da OMS é sua função normativa. O mundo precisa de uma agência para ter uma normatização. Não pode haver nenhum tipo de conflito de interesse ou interferência do setor privado e de ninguém. O sistema tem de ser muito sensível para identificar conflitos de interesses.
A OMS suspendeu o estado de emergência para zika. Foi precipitado?
Algumas vezes isso pode ocorrer, por causa de fragilidades na comunicação. Avalio que a sede deva ter uma atuação mais próxima com as vigilâncias, qualquer que seja a decisão deve ser tomada de acordo com evidências e em conformidade com os países.
Então houve um erro?
Não posso dizer que houve um erro, mas um mal entendido. Isso acabou interferindo nas decisões.