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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Sobre o sofrimento

Antes de nos tornarmos humanos já tentávamos reduzir nossos males e dores

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Atualização:

Começando pelo fim, já adianto que o sofrimento nunca acabará. Nem nossos esforços para reduzi-lo. Essa é uma daquelas batalhas inglórias, que nós sabemos que não venceremos, mas não podemos deixar de lutar. Antes de nos tornarmos humanos como nos conhecemos, afinal, provavelmente já tentávamos reduzir nossos males e aliviar nossas dores, como mostra o fato de nossos irmãos primatas usarem algumas plantas medicinais até hoje. Sua eficácia modesta, contudo, nos fazia mais humildes diante dos reveses da vida; nos aceitávamos de forma mais resignada, eventualmente até encontrando propósitos para eles.

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Com o progresso científico e tecnológico, no entanto, passamos a ter cada vez mais sucesso nos embates contra o sofrimento. Na Grécia Antiga os médicos prescreviam extrato de salgueiro para as dores nas articulações e Homero já descrevia as propriedades do ópio, mas somente no final do século XIX o desenvolvimento da farmacologia permitiu a criação dos primeiros medicamentos com eficácia maior. Até aqui, ótimo. O problema é que, a cada avanço que experimentamos, mais petulantes ficamos. Asclépio, deus grego da medicina, já fora punido por causa de sua arrogância: de tanto curar, ele estava esvaziando o mundo dos mortos, reino de Hades, que – furioso com a concorrência – pediu sua morte. Desde então, essa húbris só faz piorar. E se a chegada dos analgésicos e anestésicos nos fez acreditar que um dia ficaríamos livres da dor, o advento dos antidepressivos prometia o fim definitivo de qualquer sofrimento.

A redução da intensidade e frequência das nossas aflições nos afastou gradualmente da compreensão – ou invenção – dos seus propósitos subjacentes. Quando não havia o que fazer para combater os padecimentos, as pessoas se voltavam para o seu significado, sua função, e até mesmo para as consequências positivas que eles traziam. Mas quando um ou dois comprimidos bastam para trazer alívio, rapidamente abandonamos esse exercício mental demorado e dispendioso. Não queremos mais saber os motivos daquela dor, queremos nos ver livres dela. Tanto na experiência de vida cotidiana como na experiência clínica, contudo, é evidente que o sofrimento não tem uma solução final. Por mais que avancemos tecnologicamente, desenvolvendo analgésicos extremamente potentes ou antidepressivos que nos coloquem à beira da euforia, a vida real sempre se impõe diante de nós uma hora ou outra, e o dique de anestesia física e emocional acaba se rompendo.

E então percebemos que, quanto menos preparados estamos para controlar a vazão da dor, mais catastrófico é esse momento.

É urgente lembrar que sofremos. Não para nos resignarmos novamente diante das aflições: há dores totalmente despropositadas cujo banimento deve continuar a ser nosso objetivo constante. Mas aceitar a realidade da dor humana nos torna menos despreparados para quando ela consegue pular as barreiras químicas com as quais tentamos cercá-la. Isso fica claro no movimento crescente pelo parto natural. Como homem, não me sinto capaz de opinar sobre a decisão de uma mulher ter seu filho sem analgesia. Mas o fato de muitas optarem pelo trabalho de parto sem alívio farmacológico é revelador de como encontrar um propósito para a dor reduz o sofrimento que ela causa. Aposto que nenhuma dessas gestantes optaria por extrair o dente do siso sem anestesia – qual seria o propósito, afinal? Mas a forma como elas encaram o nascimento do filho torna aceitável algo que em outro contexto seria insuportável. O mesmo pode ser observado em atletas, que veem na dor um sinal da intensidade de sua dedicação aos treinos, ostentando-a tanto quanto tentando mitigá-la.

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O sofrimento nunca vai acabar. Devemos, sim, continuar lutando contra ele. Mas proponho que resgatemos uma postura mais humilde, menos entusiasmada com os resultados dessa guerra. Acredito que retomar as narrativas que reconhecem a existência de nossas aflições e encontram propósitos para elas não nos impedirá de buscar lenitivos, mas nos deixará menos frustrados quando eles não funcionarem.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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