Entidades médicas e científicas defendem banimento do uso de medicamentos do kit covid

Como Estadão revelou, uso dos remédios do falso ‘tratamento precoce’ levou cinco pacientes à fila do transplante de fígado e está sendo apontado como causa de ao menos três mortes por hepatite medicamentosa

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Por Fabiana Cambricoli
Atualização:

SÃO PAULO - Entidades médicas e científicas brasileiras divulgaram nesta terça-feira, 23, documento no qual alertam sobre a gravidade da situação da pandemia de covid-19 no País e defendem, entre outras medidas, o banimento da prescrição e uso dos medicamentos do chamado kit covid, que inclui drogas sem eficácia contra a doença, como hidroxicloroquina e ivermectina, mas que segue sendo indicado por alguns médicos e defendido pelo presidente Jair Bolsonaro.

Nesta terça, o Estadão revelou que a utilização das drogas já levou cinco pacientes à fila do transplante de fígado em São Paulo e está sendo apontado como causa de ao menos três mortes por hepatite causada por remédios. A reportagem também trouxe relatos de efeitos colaterais como hemorragias causadas pelo uso indevido dessas drogas.

Comprimidos de cloroquina e hidroxicloroquina Foto: George Frey/Reuters

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Em boletim do Comitê Extraordinário de Monitoramento da Covid-19, grupo liderado pela Associação Médica Brasileira (AMB) e que reúne diversas sociedades científicas e associações médicas de todo o País, as entidades alertam para a falta de estrutura, insumos e profissionais neste momento da pandemia e ressaltam que as fake news “desorientam os pacientes”. Reafirmam ainda que não existe tratamento precoce comprovado contra a doença.

“Reafirmamos que, infelizmente, medicações como hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da covid-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida”, diz texto do boletim.

Originalmente, como noticiado pelo Estadão, o documento era assinado por 81 entidades médico-científicas - 54 sociedades científicas das mais diferentes especialidades e as 27 associações médicas estaduais, todas associadas à AMB. Nesta quarta-feira, porém, 15 entidades pediram a retirada dos seus nomes da lista de signatárias do documento justamente por não concordarem com o ponto que pedia o banimento do uso do kit covid.

O presidente da AMB, César Eduardo Fernandes, admitiu que foi um equívoco colocar as entidades como signatárias, pois, de fato, elas não foram consultadas previamente sobre o teor do texto, redigido pelos especialistas do comitê. O órgão é formado por representantes de 12 sociedades médicas ligadas diretamente ao enfrentamento da covid, como as sociedades de infectologia e pneumologia.

"Incluimos todas por serem afiliadas da AMB e porque queríamos dar protagonismo a todas elas, achando que todas iriam aderir. Esqueci de algo fundamental: nosso País está polarizado e tem diretores de entidades que foram contrários. Olhando agora, não deveríamos ter feito dessa forma", reconheceu.

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A AMB preferiu retirar do documento o nome de todas as entidades que haviam sido indicadas como signatárias e manter somente os nomes dos membros do comitê executivo que redigiram o texto e de suas respectivas sociedades.  Por essa razão, o Estadão também removeu a lista das entidades signatárias que havia sido publicada ao final dessa matéria.

Uso de medicamentos pode trazer riscos, diz documento

Além de desaconselhar o uso dos medicamentos do chamado kit covid, o documento da AMB ressalta o risco da utilização indevida dos corticoides e anticoagulantes na fase inicial da doença. Os dois tipos de medicamentos podem ajudar no tratamento da fase mais grave da covid, em pacientes hospitalizados. Quando usados no início dos sintomas, eles podem levar ao agravamento do quadro.

“Aos médicos, reafirmamos que o uso de corticoides e anticoagulantes devem ser reservados exclusivamente para pacientes hospitalizados e que precisem de oxigênio suplementar, não devendo ser prescritos na covid leve, conforme diversas diretrizes científicas nacionais e internacionais”, orienta as entidades aos profissionais.

As entidades recomendam que os pacientes não se automediquem, em especial com corticoides, como dexametasona e predinisona. “Estes fármacos utilizados fora do período correto, especialmente no início dos sintomas, podem piorar a evolução da doença”, diz a nota.

A orientação é procurar atendimento médico em um posto de saúde ou por telemedicina no caso de sintomas leves, como dor de garganta, tosse, dor no corpo, náuseas, perda de apetite, perda do olfato ou paladar. Se houver falta de ar, a orientação é buscar uma UPA ou pronto-socorro.

O presidente da AMB ressaltou que os melhores estudos sobre o tema, “feitos com metodologia adequada”, não mostraram eficácia do chamado tratamento precoce na redução da mortalidade pela doença.

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“Essas drogas não têm eficácia e, em casos raros, podem levar a efeitos colaterais graves. Esse risco só deveria ser aceito se eles fossem extremamente eficazes, o que não é o caso”, disse ele ao Estadão.

O especialista ressalta que os médicos não podem se valer de sua autonomia para indicar medicamentos que não funcionam.

“A autonomia do médico não confere a ele o direito de receitar medicações que não têm comprovação. Muitos fazem isso porque acreditam que a sua experiência sustenta o uso desses fármacos. Pensam que, como tiveram pacientes que usaram esses remédios e melhoraram, isso justifica. Mas a maioria dos pacientes melhoraria mesmo se não tivesse sido tratada. É uma visão muito equivocada”, afirma Fernandes.

A autonomia médica é o principal argumento do Conselho Federal de Medicina (CFM) para permitir a prescrição desses remédios. O órgão tem sido duramente criticado por não se posicionar e punir médicos que têm insistido em tratamentos comprovadamente ineficazes.

O Código de Ética Médica prevê que é vedado ao médico “causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”. Em casos de efeitos colaterais de medicações ineficazes contra uma doença, o médico pode ser denunciado ao conselho regional de medicina do Estado onde atua ou até ser processado.

"Se o paciente provar que teve a saúde afetada por um desses medicamentos ineficazes, cabe uma ação civil de reparação de danos que responsabilize o médico", opina Arthur Pinto Filho, promotor da área de Saúde Pública do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPE-SP).

Ele afirma ainda que até mesmo o CFM poderia ser processado pela sua postura omissa no tema. "Como pode um órgão de classe não ter uma posição num tema tão importante como esse? Eles jogam a responsabilidade para o médico, mas estão orientando de forma anticientífica. Em abril de 2020, no início da pandemia, havia uma certa dúvida sobre a eficácia dessas medicações. Hoje, não tem mais", diz 

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O CFM foi questionado pela reportagem se manterá sua postura de autorizar a prescrição desses medicamentos mesmo com evidências de que eles não funcionam e ainda trazem riscos para a saúde. A conselho respondeu que "se manifestará oportunamente".

O Ministério da Saúde, que já defendeu oficialmente o falso "tratamento precoce" e tem nota de orientação na qual recomenda o uso de hidroxicloroquina e azitromicina para a covid, afirmou apenas que "os médicos têm autonomia para receitar a medicação adequada ao quadro de cada paciente para que o tratamento seja o mais efetivo possível".

Disse ainda que a "orientação e recomendação da pasta é que, aos primeiros sinais da covid-19, os pacientes procurem um Unidade Básica de Saúde (UBS) para atendimento médico", medida fundamental para evitar casos graves da doença.

Outras medidas

No boletim, as instituições defendem ainda a vacinação rápida, o isolamento social, o uso correto de máscaras e a higiene das mãos. Solicitam ainda “esforços políticos e diplomáticos” para a compra de medicamentos usados na intubação, já escassos em vários hospitais.

“São urgentes esforços políticos, diplomáticos e a utilização de normativas/leis de excepcionalidade, para solucionar a falta de medicamentos ao atendimento emergencial de pacientes hospitalares acometidos pela covid-19, em especial de bloqueadores neuromusculares, opioides e hipnóticos - indispensáveis ao processo de intubação de doentes em fase crítica. Por compromisso ético e zelando pela transparência, informamos que, na ausência destes fármacos, não é possível oferecer atendimento adequado para salvar vidas”, dizem.