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Psiquiatria e sociedade

Opinião|A hora dos professores

De todas as condições, a falta de reconhecimento é das mais doloridas. E fácil de corrigir

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A psiquiatria tem uma história longa de intersecção com a justiça. Quando paramos para pensar no assunto é até bastante óbvio: a lei pressupõe cidadãos e cidadãs racionais e com autocontrole. Embora essa seja a regra entre os adultos, existem exceções: qualquer quadro psiquiátrico que altere alguma função mental pode ser relevante juridicamente. Como quando alguém adoece a ponto de seus sintomas prejudicarem sua capacidade de trabalho: às vezes é necessário afastamento, benefícios previdenciários; eventualmente o empregador chega até a ser responsabilizado.

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Um dos maiores desafios de quem ensina Psiquiatria Forense, como fazemos para os médicos residentes no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, é transmitir não só o conhecimento, mas também ajudar os alunos a desenvolver as habilidades necessárias para fazer essa avaliação tão sutil: essa pessoa está realmente doente? Se sim, os sintomas interferem no trabalho?

A grande dificuldade é compreender exatamente o trabalho do outro quando não se vivencia a sua realidade. Mesmo médicos do trabalho, especialistas nessas avaliações, muitas vezes sabem na teoria quais são as habilidades necessárias para desenvolver determinada função, mas nem sempre visitaram minas de carvão, plataformas de petróleo, cabines de controle de tráfego aéreo. Ou salas de aula. O que atrapalha o exercício de empatia afetiva e de compreensão racional das dificuldades enfrentadas por esses profissionais.

É comum avaliarmos professores com quadros depressivos cujos sintomas não parecem, por si sós, incapacitantes. Mas antes de atestarmos a capacidade de retorno ao trabalho, nós devemos considerar outros fatores: a atividade do professor – notadamente no serviço público – envolve gerenciar dezenas de crianças ou adolescentes ao mesmo tempo, em número maior do que o recomendado, cujo interesse é reduzido, com estrutura precária, barulho acima do saudável. O dia todo, todos os dias. Descrevendo assim a avaliação pode ficar um pouco mais precisa.

Mas nada como uma pandemia, forçando o homeschooling, para melhorar ainda mais essa perspectiva. O desespero dos pais para manejar poucos filhos ao mesmo tempo, sem a influência direta das outras crianças, investido de uma autoridade que não é a mesma dos professores, mostrou como poucas vezes o que é o magistério. 

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A volta às aulas em São Paulo será de forma gradual. Foto: Diego Herculano / ESTADÃO

Depois de passar por essa experiência talvez não pareça mais tão espantoso o fato de que só no Estado de São Paulo mais de cem professores por dia se afastem do trabalho por transtornos mentais, segundo uma pesquisa de 2019. Ela mostrava que cerca de 50 mil docentes eram afastados por ano – só por essas causas. Sempre se pode imaginar que haja fraudes ou exageros em meio a esses números, mas o volume absurdo não deixa margem à dúvida de que essa é uma população sob um estresse acima da média.

Quando formos discutir a volta às aulas, portanto, é bom lembrar desse pequeno detalhe, tão frequentemente esquecido. Ao lado dos profissionais de saúde, que estiveram (e estão) sob intenso estresse, os profissionais da educação certamente estão entre os mais afetados: tiveram de se travestir de youtubers, transformar lousas em telas, giz em mouse, alunos em público, na maioria das vezes sem treinamento adequado para tanto. E agora, diante de uma doença ainda desconhecida, cujos riscos de transmissão por pessoas pouco sintomáticas – como o caso das crianças – é ainda incerto, e cujo risco de gravidade é pequeno, mas nada desprezível, são eles que estarão na linha de frente.

Talvez seja isso mesmo. Como médicos, enfermeiros, farmacêuticos e toda a equipe dos hospitais, de faxineiro a escriturário, não puderam se furtar a seu papel nessa pandemia, eventualmente tenha chegado a vez de professores, coordenadores, inspetores, secretários, entrar no fogo cruzado.

Pode até ser. Mas, se for o caso, é bom que demos a devida importância a eles. Porque, ao menos em nossa experiência, de todas as condições que abalam emocionalmente esses profissionais, a falta de reconhecimento é das mais doloridas. E talvez a mais fácil de corrigir.

DANIEL MARTINS DE BARROS É PSIQUIATRA

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Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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