A nova rotina dos italianos após a quarentena em todo o território

Políticos e artistas incentivam que as pessoas permaneçam dentro de casa. As ruas estão desertas e as lojas, vazias

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Por Fernanda Massarotto e Paula Acosta
Atualização:

MILÃO, ITÁLIA – A hashtag #iorestoacasa (#euficoemcasa) acaba de ser criada para motivar os italianos a não colocarem os pés fora da residência por causa do novo coronavírus, a menos que seja extremamente necessário. A campanha ganhou força nas redes sociais e tem contado com o apoio de artistas e políticos. O direito de ir e vir continua sendo respeitado, mas o governo pede que a população, e principalmente a que vive nas regiões mais afetadas como Milão, saia de casa o mínimo possível. 

Movimento na Galeria Vittorio Emanuele caiu bruscamente Foto: Fernanda Massarotto e Paula Acosta

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Nas ruas, quase desertas, poucos são os que se aventuram a entrar em lojas ainda abertas. O "assalto" aos supermercados é coisa de um passado recente. As prateleiras são reabastecidas diariamente e os carrinhos abarrotados não se veem mais com frequência. 

Na Via Montenapoleone, uma das ruas do famoso quadrilátero da moda, o número de turistas que circulam pelas boutiques de luxo é quase inexistente. Dentro das lojas vazias, os funcionários, todos de máscaras e muitos de luva, conversam entre si. Russos, chineses e árabes, os principais clientes de grifes como Valentino, Alberta Ferretti, Ermenegildo Zegna e Pucci, desapareceram literalmente. 

Giorgio Tarallo, proprietário da Farmácia Solferino, no centro de Milão, viu as vendas subirem mais de 50% no fim de fevereiro Foto: Fernanda Massarotto e Paula Acosta

Nesta terça-feira, 10, foi a vez da Espanha suspender todos os voos com direção ao território italiano e acabou pegando de surpresa José Carlos Parra, de 21 anos, estudante de Málaga, no sul do país. Ele e a namorada Maria desembarcaram na hora do almoço em Milão e ficaram sabendo que terão de voltar para casa no dia 13 de março com um voo via Inglaterra. "Havíamos organizado essa viagem há 4 meses. É nossa primeira vez em Milão. Vamos tentar nos adaptar. Ir visitar monumentos, museus que estiverem abertos e comer em alguns  restaurantes", lamentou o jovem espanhol, munido de máscara e gel antisséptico, ao lado da namorada que admirava os vestidos de uma das boutiques da via Montenapoleone.  

Trabalhando e estudando de casa

A poucos metros do quarteirão da moda, Gaia Giorgini viu seu apartamento se transformar em um espaço multifuncional. A italiana de 41 anos trabalha de casa há duas semanas e nos últimos 10 dias passou a dividir a mesa da sala de jantar com os filhos Lorenzo, de 11, e Riccardo, de 9. Sem falar, que, em alguns dias da semana, Alessandro, um colega de classe do primogênito se une ao amigo para seguir as aulas à distância. "Temos a sorte de poder cumprir nossos compromissos profissionais e escolares de casa. Tudo graças à tecnologia", aliviou-se Gaia, que faz  parte do departamento comercial da grife Kiton, marca napolitana reconhecida por sua alfaiataria. 

As crianças, que estudam na Canadian School of Milan, uma escola internacional, se sentam à frente do computador ou tablet a partir das 9 da manhã e interagem com os professores via skype ou streaming. "Eles ainda podem desfrutar de uma pausa a cada duas horas, almoçam e seguem até às 15h30", continuou a mãe, que na última semana tem dado treinamento aos funcionários de Moscou por whatsapp. 

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Gaia, porém, admite não estar seguindo à risca o chamado "toque de recolher" recomendado pelo governo. "Saio todos os dias. Vou correr no parque, levo os meninos para andarem de bicicleta. É claro que tomo precauções como evitar estar em contato com idosos, em locais fechados e assim que chego em casa lavo as mãos. E tomo muita vitamina C e tenho me alimentado bem". 

‘O primeiro produto a desaparecer foi o álcool gel’, diz farmacêutico

Fortalecer o sistema imunológico inclusive tem levado os milaneses a consumir vitamina C e D como nunca se viu. Giorgio Tarallo, de 41 anos, farmacêutico e proprietário da Farmácia Solferino, no centro de Milão, viu as vendas subirem mais de 50% no fim de fevereiro, quando o governo decretou o primeiro "toque de recolher" em 11 cidades, 10 delas na Lombardia. "O primeiro produto a desaparecer foi o álcool gel e logo depois as máscaras. Houve também muita procura por desinfetantes. Hoje, as vendas se normalizaram e as vitaminas são as mais requisitadas", observou ele, que afirma ter trabalhado intensamente de segunda a sábado.

O único funcionário da farmácia está em casa resfriado. "Melhor que fique mesmo lá e se recupere", Giorgio riu. Ele permite a entrada de até três clientes por vez no local e os orientam para que fiquem a um metro de distância uns dos outros. 

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Enquanto as farmácias e supermercados continuam com fluxo contínuo em suas vendas, o mesmo não se reflete nos restaurantes que, há alguns dias, fecham as portas às 18h. Nem mesmo promoções e descontos ajudam a melhorar a situação. 

O gaúcho Tarcísio De Bocca, proprietário do histórico restaurante Biffi, que fica na Galeria Vittorio Emanuele, a poucos metros da famosa Catedral Duomo, viu o movimento cair 100%.  "Não é exagero", atesta ele. No domingo passado, De Bocca faturou 4 euros por um café e ontem, terça-feira, 60. "Na segunda-feira, não entrou nenhum cliente. Dos 25 funcionários, só 4 estão trabalhando. Tento ser otimista, mas está difícil", lamentou o brasileiro, que passou a oferecer 10% de desconto para os clientes no almoço e jantar. 

Nos arredores de Milão 

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O Naviglio Grande é um canal do século XII que nasce no lado italiano do rio Ticino, na zona de Varese, norte do país, e avança por diversos municípios da região até desembocar em Milão. Correr, caminhar, andar de bicicleta, praticar os mais diversos esportes é a coisa uma rotina às margens desse corredor de água – por meio dele foi transportado o mármore que construiu a catedral da cidade famosa pela moda e pelo design.  

O histórico canal está vazio porque é período de manutenção, deixando a “atmosfera” das pequenas localidades cortadas por ele um pouco desolada. Ainda assim, teve quem se aventurasse a sair de casa no primeiro dia da quarentena nacional para passear nas zonas de pedestres e na ciclovia à beira do Naviglio Grande.

Irena Sintic, de 52 anos, croata que vive na Itália desde 1994, tomava sol tranquilamente com a filha Emma, de 14, em um parque de Corsico, cidade onde mora, distante 7km do centro de Milão, na zona sudoeste. Quando a reportagem se aproxima para entrevistá-la, respeitando a distância precaucional de um metro, ela pergunta imediatamente se podemos nos afastar um pouco mais, antes até de responder à saudação “buon pomeriggio” (boa tarde). Depois da tensão inicial, se tranquiliza e aceita conversar conosco.

“Creio que, só agora, estou tendo uma noção real do que está acontecendo aqui. Depois das últimas medidas, sinto-me mais consciente hoje do que três dias atrás. Por isso, aflora essa desconfiança inicial quando encontro alguém que não conheço. As notícias sobre a difusão tão rápida do vírus geram uma espécie de peso dentro da gente”, disse Irena.

Exatamente para exorcizar essa sensação é que decidiu passar algumas horas ao ar livre com a filha adolescente, aproveitando o dia de sol depois de ter trabalhado de manhã na empresa do marido, especializada na construção de portas para garagem, enquanto a jovem estava em casa e seguia, por videoconferência,  as atividades escolares. 

“Eu fico sozinha no escritório, que é localizado em Milão. Como não tenho contato com outras pessoas, continuo indo trabalhar normalmente, usando a minha bicicleta. Já a produção da nossa empresa é situada no município de Trezzano sul Naviglio, sempre na região metropolitana de Milão. Temos poucos funcionários, mas eu e meu marido estamos pensando em não abrir as duas sedes nos próximos dias, para ver como vai ficar essa situação. Através de celular e e-mail, podemos resolver todas as tarefas e sair só quando for alguma urgência, como consertar uma porta enguiçada”, afirmou ela, deitada sobre o escultural banco de pedra do parque. 

Assim como Irena, o aposentado Antonio, de 67 anos, amante do ciclismo, também transitou de uma cidade para outra, tranquilamente, mesmo em período de quarentena. Aproveitando os 16 graus que antecipam a primavera, ele subiu na bicicleta, saiu da sua residência em Milão e pegou a ciclovia que acompanha o canal, passando por diversas cidades da região metropolitana. Queria alcançar o município de Gaggiano (a 15km do local de partida) e, de lá, voltar para casa. 

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Depois da imposição do toque de recolher, ele deveria estar munido de uma autodeclaração que atestasse a necessidade do deslocamento, caso fosse abordado por alguma autoridade. Antonio, porém, nem se preocupou em preencher o papel. “Nao vi nenhum controle quando eu estava vindo para cá”, contou ele quando passou por Corsico. “Estou em um ambiente aberto, não vou a bares ou outros lugares com muitas pessoas. O importante é tomar os devidos cuidados. Além disso, esporte faz bem”, continuou.

Decreto

Segundo o novo decreto, é possível se distanciar do domicílio somente por exigência de trabalho; em casos de necessidade, como fazer compras de supermercado ou ir à farmácia; por questões de saúde ou para retornar para casa. Pessoas em isolamento ou com teste positivo para o vírus são taxativamente proibidas de deixar o próprio lar. As limitações se referem a pessoas, mas não ao trânsito de mercadorias.

Quem viole as prescrições pode ser punido com prisão de até três meses e uma multa de até 206 euros (quase 1100 reais).  Dependendo da gravidade da ação, penas mais graves podem ser aplicadas.

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