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Diagnosticada com autismo nível 1, conhecido como autismo leve, a jornalista Renata Simões vai debater abertamente sobre o tema

Opinião|A vida não tem manual

Estudos apontam que a camuflagem de sinais do autismo por mulheres e meninas torna o diagnóstico mais difícil nesse grupo, principalmente no nível de suporte 1

Atualização:

‘Uma moça, ao beber, não deve respirar dentro do copo para não o embaçar.’ Durante anos, fiz apneia nesse momento. Os ensinamentos dessa tia, que personificava elegância, eram lei. As tias, filmes e livros indicavam como uma mulher deveria se comportar. Eu tinha a sensação de que havia uma regra universal que todos conheciam, menos eu. Colecionei manuais de etiqueta, buscando a chave que garantiria o fim do constrangimento por algo natural para mim, e esquisito para o mundo, como me parecia a história do copo. 

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Estudos apontam que a camuflagem de sinais do autismo por mulheres e meninas torna o diagnóstico mais difícil nesse grupo, principalmente no nível de suporte 1. Não que os homens não mascarem sua condição, só é menos comum. Camuflar, dentro do espectro, foi definido em 2017 como “a diferença entre como as pessoas parecem em contextos sociais e o que está acontecendo com elas em seu interior”. 

Meninas com autismo costumam se comportar de maneiras consideradas adequadas, se não ideais, ao que a sociedade espera da conduta feminina. A maneira como as mulheres são criadas para observar, ser agradável, educada, reflete nos diagnósticos: uma menina introspectiva tem um recato que (ainda) se espera dela, e um hiperfoco em animais ou bonecas pode passar batido, pois meninas atípicas têm esses mesmos interesses. Os testes para detecção do TEA foram projetados para características dos meninos e os gêneros respondem de maneiras diferentes. É preciso repensar testes e padrões.

Meninas com autismo costumam se comportar de maneiras consideradas adequadas, e os testes para detecção do TEA foram projetados para características dos meninos Foto: Venita Oberholster/Pixabay.com

Reprimir comportamentos repetitivos e mimetizar modos-padrão são alguns dos relatos de quem tenta disfarçar sua diferença. No espectro, esse sistema envolve um esforço e uma elaboração nem sempre consciente, gerando sobrecarga física, mental e emocional. Mulheres diagnosticadas adultas contam que desenvolveram ferramentas usadas em situações para evitar sofrimentos e ganhar aceitação: sorrir primeiro ou fazer piadas para facilitar o início da conversa (eu também!), criar frases e gestos copiando o comportamento de outras pessoas. 

Identificando o TEA, temos um entendimento da tentativa de se encaixar, do contexto de momentos específicos, e isso altera o entendimento de questões de relacionamento, profissionais e familiares. Saber que não é necessário se esconder para se encaixar ou deixar o outro mais confortável tira duas toneladas do ombro. 

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O mascaramento de sinais tem muitas camadas. Expõe cicatrizes do patriarcado e do capacitismo, impede que família e cuidadores tenham acesso a treinamentos e percepções de amparo, atrapalha que o autista possa lidar com suas dificuldades de comunicação e comportamento social. 

Com as informações corretas, ganha-se musculatura para autonomia e autoconsciência. A real é que a vida não tem manual.

Opinião por Renata Simões
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