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'Abraçar criança pode ser uma ameaça', diz brasileira que ajudou a combater Ebola

Para psicóloga que trabalhou na África pela ONG Médicos sem Fronteiras, o pior da epidemia é a ‘desumanização’

Por Clarissa Thomé
Atualização:

RIO - Primeira psicóloga brasileira a trabalhar na epidemia de Ebola, a paulistana Julia Bartsch, de 44 anos, teve contato com a realidade que a aguardava assim que chegou ao Centro de Tratamento da ONG Médicos sem Fronteiras (MsF), em Monróvia, na Libéria. Uma criança de 10 anos foi abandonada pela família na frente da unidade. Debilitada, ficou deitada no chão, enquanto a equipe médica vestia as roupas de proteção para socorrê-la.

“A própria comunidade pressiona as pessoas a abandonarem seus doentes”, conta Julia, cuja missão era dar apoio emocional a profissionais estrangeiros da ONG, como os que acolheram a criança abandonada. Outras equipes cuidam dos voluntários locais.

Julia, que atuou na Libéria, diz que ficou duas semanas sem contato físico nenhum, nem aperto de mão Foto: Marcos de Paula/Estadão

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São pessoas que veem morrer cerca de 40% dos pacientes que tratam. Trabalham para ampliar o crematório, com capacidade para incinerar 20 corpos por dia, hoje no limite da operação. Passam até dois meses sob estrito código de conduta, para evitar a contaminação e transmissão do vírus - dois meses sem contato físico algum, nem abraço nem aperto de mão. “O ser humano se adapta, as pessoas criam estratégias, cumprimentam-se tocando cotovelos. Para algumas, o pior é a sensação de desumanização. Se uma criança corre na direção delas, pode ser uma ameaça. Não se pode abraçá-la.”

A psicóloga estava na Libéria no período em que uma enfermeira francesa, voluntária da ONG, foi diagnosticada com Ebola. Outros dois morreram em Monróvia. Profissionais do MsF atuaram em surtos da febre hemorrágica em outras ocasiões, mas pela primeira vez houve baixas - 21 foram contaminados. Desses, 12 morreram, dois estão em isolamento e sete se curaram. Sob o impacto desses casos, uma voluntária deixou o trabalho. 

“Os projetos são curtos, de duas semanas a dois meses, porque as pessoas não têm condições físicas nem psicológicas de enfrentar muito tempo. E elas são estimuladas a dizer que querem sair. O que dizemos é: ‘Se não aguentarem essa realidade, não vão além dos seus limites’. Não há cobranças nem punições. O que tento fazer é diminuir o sentimento de culpa, porque elas se sentem muito culpadas por não conseguirem mais.”

Quarentena. Há ainda a ansiedade pela volta para casa. Houve casos em que a família pediu que o voluntário ficasse em uma espécie de quarentena. No Brasil, o MsF estabeleceu que aqueles que retornam de áreas com epidemia devem passar o período de incubação do vírus (21 dias) no Rio, onde fica a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), referência para tratamento de Ebola no Brasil.

As perdas de colegas e pacientes afetam muito a equipe, conta Julia. Os voluntários equilibram o sentimento de frustração nas comemorações da alta dos pacientes. É quase uma festa. O paciente recebe um diploma de que está livre da doença. Uma das altas mais comemoradas foi a de um bebê de três meses. Ele e os pais foram internados com Ebola. Só a criança sobreviveu. Saiu do isolamento para os braços de um tio. “Aquela cura tocou os profissionais. Era uma mensagem de esperança. Representava que todo o esforço vale a pena.”

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Na volta para casa, Julia foi recebida sem medo pela família. A única precaução: pediu que a sobrinha não comentasse com amigos por onde havia andado, até que passassem os 21 dias.

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