'Amamentação é uma questão da sociedade', diz especialista

Ao 'Estado', Cesar Victora, ganhador de importante prêmio na área de ciências e saúde, fala sobre desafios para o aleitamento e a condução de pesquisas no País

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Por Ligia Formenti
Atualização:
Victora recebeu o prêmio na categoria Saúde Global Foto: Daniela Xu/Ufpel

Ganhador de um dos prêmios mais importantes no mundo na área de ciências e saúde por estudos sobre o aleitamento materno, o epidemiologista Cesar Victora enfrenta dificuldades para conduzir suas pesquisas no Brasil. Diante do atraso no repasse de recursos federais, ele precisou de auxílio da Pastoral da Criança para não interromper um estudo de anos de duração. 

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Sem a etapa realizada no prazo correto, contou, o trabalho de anos poderia ir por água abaixo. O problema imediato foi contornado, mas o risco persiste. "Nossas coortes (grupos de pessoas acompanhadas desde o nascimento) estão ameaçadas." 

Professor da Universidade Federal de Pelotas, Victora ressaltou a necessidade de não se culpar a mulher por eventuais problemas na alimentação ou amamentação e criticou a estratégia defendida pelo ministro Ricardo Barros para se reduzir a obesidade infantil, de se ensinar nas escolas crianças a descascar alimentos. "É muito mais importante taxar os alimentos ruins e proibir a propaganda do que ensinar uma criança a descascar uma maçã." 

A seguir, trechos da entrevista concedida ao Estado.

Ao iniciar o estudo sobre amamentação exclusiva, o senhor imaginava obter esse resultado?

Não, foi uma surpresa. Todos sabiam da importância do aleitamento. Mas até então ninguém tinha se dado conta de que a oferta de água e dos chás, na época nas famosas "chuquinhas", fosse prejudicial. Pelo contrário, acreditava-se que só leite materno não supriria toda a necessidade de líquidos. Vimos que o risco aumentava de forma muito expressiva a cada chuquinha ofertada.

O resultado foi uniforme entre todas as classes sociais?

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Não. Avaliamos todas as mortes por diarreia ocorridas em Pelotas e Porto Alegre durante um período. Ao todo, foram 170, a maioria em população pobre, que vivia em favelas. Naquela época era mais fácil entrar em favela. Não sei se hoje conseguiria fazer o estudo, por causa da violência.

Mas a recomendação foi para a população em geral

Esse efeito é tão importante que mesmo países ricos, Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo, passaram a recomendar essa estratégia. Isso porque, além do risco de diarreia e de infecção, a oferta de líquidos diminui a produção de leite e a amamentação fica mais curta.

A amamentação brasileira já está em níveis adequados?

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Os números que dispomos são antigos. A última pesquisa nacional foi em 2007. É preciso fazer uma nova pesquisa nacional. Mas sabemos que mais ou menos metade das crianças brasileiras tem aleitamento exclusivo até os seis meses. É o tal copo meio cheio, meio vazio. Quando comecei a estudar o assunto, nos anos 80, esse indicador era zero. Estamos indo na direção certa.

Está havendo demora em se elevar esses indicadores?

Sim. Mas essas coisas são complicadas de se aumentar. A amamentação depende muito da sociedade apoiar a mulher. Em uma série publicada na revista Lancet sobre amamentação usamos o Brasil como um exemplo positivo. O País investiu muito em amamentação. Alicença-maternidade paga é grande comparada com outros países, há uma série de políticas de proteção da amamentação, como o controle dos substitutos de leite materno, a rede de banco de leite.

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As taxas de cesárea no Brasil continuam altas. Isso pode afetar a amamentação?

É muito importante que a amamentação comece logo na primeira hora depois do nascimento. Estudos recentes indicam que essa prática pode provocar uma série de efeitos epigenéticos, que é a modulação de genes, e efeito sobre o microbioma, o efeito que a bactéria terá sobre o intestino da criança. A cesárea atrapalha esse processo. Não que seja impossível colocar uma criança imediatamente no seio da mãe praticamente durante a cesárea, enquanto a equipe se ocupa em fechar a barriga da mãe, a criança estar agarrada no peito. Mas é difícil. Vemos isso com preocupação. Afinal, 60% dos nascimentos no País são por cesárea.

O senhor enfrentou dificuldade de financiamento para suas pesquisas?

No começo era difícil porque ninguém nos conhecia. Depois, fomos ficando conhecidos e conseguimos muitos financiamentos,principalmente internacionais. Atualmente, no entanto, estamos numa crise, porque a ciência brasileira está em crise. Temos um financiamento grande nacional. Mas o dinheiro não chega. 

O dinheiro está bloqueado?

O dinheiro é anunciado, você ganha o projeto mas os órgãos federais não liberam porque não têm caixa. Financiamentos que recebemos em 2014 estão sendo liberados agora. O financiamento muito grande para manter nossas coortes (populações acompanhadas ao longo dos anos) está trancado. Isso é muito ruim, porque o acompanhamento de coortes não pode esperar. Isso não é uma pesquisa numa cobaia, que você pode fazer hoje ou amanhã. Essas pessoas são acompanhadas desde o nascimento. Periodicamente, você as visita. Se isso não é feito no período certo, você perde o dado essencial sobre o desenvolvimento e a saúde dessa pessoa. A comunidade científica brasileira está muito preocupada com essa questão de redução nas verbas na área de pesquisa. 

Como os senhores estão fazendo para driblar a falta de recursos?

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Nós últimos dois, três governos a ciência teve um bom financiamento, mas agora... No passado, buscávamos recursos de fontes internacionais. Agora retornamos a essa estratégia. Mas isso não é algo que ocorre da noite para o dia. Um financiamento demora certo tempo. Até fazer o projeto, até receber a aprovação.. A curto prazo, nossas coortes estão ameaçadas porque contávamos como certo o dinheiro do governo federal que não chegou. Por enquanto, estamos conseguindo apertar o orçamento, pegar um pouco de dinheiro daqui, um pouco de dinheiro dali. A Pastoral da Criança, por exemplo, agora nos ajudou a financiar a visita de 2 anos de acompanhamento de bebês que nasceram em 2015.

E a situação dos novos pesquisadores?

Estou muito preocupado porque os pesquisadores jovens estão indo para o exterior. Esse ano mesmo três integrantes super capacitados do meu grupo foram para a Inglaterra. Eles são atraídos por outras universidades onde eles têm oportunidade de fazer pesquisa. São pesquisadores jovens, que o Brasil investiu na formação. É muito triste esta situação. Os melhores estão indo.

O senhor vê perspectiva de melhora?

Com todas essas limitações orçamentárias que estão ocorrendo, o teto dos gastos públicos... acho difícil. A pesquisa vai se tornando mais complexa, mais tecnológica, exige máquinas mais complexas, exames mais complexos. Isso tudo custa dinheiro.

Qual a importância do trabalho que o senhor conduziu sobre amamentação exclusiva e sobre os mil dias para a saúde?

Os dois trabalhos influenciaram políticas globais. A partir de 1991, a ONUpassou a recomendar o aleitamento exclusivo. O meu trabalho foi o primeiro, mas depois outros confirmaram o mesmo. Nenhuma política mundial muda por causa de uma única pesquisa. Depois do nosso trabalho, publicado em 1987, a pesquisa da amamentação foi replicada no Peru e nas Filipinas. O mesmo aconteceu com a recomendação dos mil dias, outros estudos foram feitos. Várias agências internacionais ressaltam a necessidade de garantir uma nutrição adequada para a gestante e para o bebê, nos dois primeiros anos de vida. Se as ações de nutrição são feitas quando a criança atinge os 4, 5 anos, o efeito é muito menor. É aquele ditado "é de menino que se torce o pepino."

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Qual deve ser o foco nos primeiros mil dias?

Para começar, um pré-natal de qualidade, para conseguir a nutrição da mulher, quando necessário, com suplementação com vitaminas. 

Quais os benefícios?

Uma criança subnutrida é pequena. Mas não é apenas estatura. Seu cérebro é pequeno, seu rim é pequeno, seu pâncreas, fígado. Com isso, ela tem risco maior de ter diabete, de ter doenças cardiovasculares e assim por diante. As pesquisas mostram que uma boa nutrição do bebê ainda dentro do útero e dos dois anos tem um impacto até mesmo na epidemia de diabete que vivemos aqui.

Por que a criança desnutrida tem maior chance de ter diabete?

A capacidade de produzir insulina depende do número de células que você tem nos órgãos encarregados do metabolismo. Uma criança desnutrida tem maior propensão a apresentar órgãos com dificuldade para desempenhar essa atividade. Essas crianças, desnutridas na infância, quando chegam à adolescência e idade adulta são expostas a uma dieta rica em gorduras e calorias. A dificuldade em metabolizar aumenta o risco para diabete, aterosclerose e doenças cardiovasculares. Uma deficiência que surgiu lá nos primeiros mil dias se une a outro problema dos dias atuais. 

O ministro da Saúde, Ricardo Barros, associou a obesidade infantil ao fato de ela não aprender "com as mães" em casa a descascar alimentos in natura.

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É preciso ter muito cuidado e não culpar a mulher. A questão da alimentação infantil, assim como a questão da amamentação é uma questão da sociedade. Se a mulher trabalha fora, não tem creche, se ela tem uma licença maternidade curta, se ela é uma trabalhadora informal nem licença maternidade ela tem, claro que isso vai afetar a amamentação. Isso não é culpa da mulher.

E a obesidade?

A saída está no controle da propaganda de alimentos e na taxação de alimentos não saudáveis. OMéxico criou uma taxa extra em refrigerantes. Pelo lobby da indústria alimentícia, nosso governotem sido muito tímido nessa área. Nosso legislativo tem sido contrário a taxar esses alimentos não saudáveis. Para mim é muito mais importante taxar os alimentos ruins e proibir a propaganda do que ensinar uma criança a descascar uma maçã.