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Ambiente fechado e emissão de gotículas: estudos apontam risco de transmissão da covid em igrejas

Pesquisa de Stanford mostra chance maior de infecção em missas do que em mercados e consultórios médicos; disputa sobre cultos religiosos foi para Justiça nos EUA

Foto do author João Ker
Por Felipe Resk e João Ker
Atualização:

SÃO PAULO - Estudos científicos no exterior já indicaram riscos de proliferação do novo coronavírus com a realização de missas e cultos presenciais. Segundo cientistas, esses eventos reúnem fatores que propiciam a transmissão da covid-19, como reunir grande quantidade de pessoas em espaços fechados ou promover atividades que aumentam a chance de espalhamento do vírus, em que os frequentadores falam alto e cantam. Por isso, as cerimônias podem estar ligadas ao surgimento de surtos. Uma pesquisa da Universidade de Stanford (EUA), por exemplo, coloca igrejas na frente de mercados e consultórios médicos como ambientes de mais risco.

Apesar de o Brasil estar no pico da pandemia, com sucessivos recordes diários de morte e hospitais superlotados, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Nunes Marques decidiu no sábado, 3, autorizar celebrações religiosas presenciais no País. A medida, em decisão monocrática, foi alvo de críticas de colegas e de prefeitos. Já o ministro Gilmar Mendes negou pedido semelhante para reabrir igrejas e agora o tema deve ser discutido no plenário na próxima quarta-feira, 7.

Igreja Nossa Senhora do Brasil com fiéis na pandemia. Foto: Marcelo Chello/ Estadão - 6/2/2021

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Nunes Marques tomou a decisão em ação movida pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), que aponta violação à liberdade religiosa e ao princípio da laicidade estatal. O ministro determinou, ainda, que sejam aplicados protocolos sanitários, limitando a presença a 25% da capacidade do público nos templos. 

“Em um momento menos intenso poderíamos ser mais flexíveis. Não precisa esperar acabar tudo, mas estamos no momento de transmissão mais intensa”, diz Marcio Sommer Bittencourt, mestre em saúde pública pela Universidade de Harvard e médico do centro de pesquisa clínica e epidemiológica do Hospital Universitário da USP.

Pesquisa de Stanford publicada na revista científica Nature, em novembro, indica que poucos pontos de aglomeração foram responsáveis por oito a cada dez novos casos de covid nos Estados Unidos nos primeiros meses da pandemia. O estudo usou dados de movimentação de 98 milhões de pessoas em dez áreas metropolitanas, entre elas Nova York, Los Angeles, Chicago e Miami, e desenvolveu um modelo matemático para avaliar o quanto cada local contribuiu para a proliferação da doença.

Pela projeção, igrejas e templos aparecem em 6º lugar em grau de risco -- na frente de consultórios médicos (7º) e mercados (8º) e atrás de restaurantes (1º), academias (2º), hotéis e motéis (3º), bares e cafés (4º) e lanchonetes (5º). Para os cientistas, o controle do vírus seria mais eficiente se as medidas de restrições fossem direcionadas a esses locais.

Desde o início da pandemia, pesquisadores têm se dedicado a compreender o comportamento do vírus. Evidências científicas indicam que a principal forma de contaminação é por contato com gotículas expelidas, por exemplo, durante a fala, espirro ou tosse.

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Cientistas da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e do Massachusetts Institute of Technology (MIT), dos EUA, chegaram a desenvolver uma tabela que mede o risco de contágio em diferentes cenários. O artigo, publicado no periódico de saúde The BMJ em outubro, considera fatores como circulação de ar, tamanho da aglomeração e tempo de exposição ao vírus -- e confirma a tese de que locais com mais pessoas e menor circulação de ar representam maior chance de infecção.

O estudo alerta que o tipo de atividade realizada no lugar também é uma variável importante, uma vez que isso interfere na velocidade com que as partículas de ar são emitidas. Quando as pessoas cantam ou falam alto, como em celebrações religiosas, há mais risco de propagação mesmo com distanciamento de dois metros entre os presentes. Um dos episódios citados pelos pesquisadores é o do surto de coronavírus em um coral nos Estados Unidos. Na ocasião, 32 cantores acabaram infectados, apesar de cumprir os protocolos de distância durante os ensaios.

Vitor Mori, físico, pesquisador da Universidade de Vermont (EUA) e membro do Observatório Covid-19 BR, diz que igrejas e templos religiosos não apenas têm “risco muito alto” de transmissão do vírus, como também são eventos de “superespalhamento”. “A força motriz por trás da pandemia é ligada a esses eventos, onde muitas pessoas se infectam ao mesmo tempo. Normalmente acontecem em espaços fechados, com muita gente, onde as pessoas estão cantando ou gritando”, explica.

Nestes casos, segundo ele, o uso inadequado da máscara e a falta de respeito ao distanciamento mínimo de dois metros também agravam a situação.“Álcool em gel e medição de temperatura são inúteis na transmissão pelo ar, que é a principal da covid”, aponta Mori.

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Os casos mais simbólicos envolvendo atividades religiosas foram registrados na Coreia do Sul. Ainda em fevereiro de 2020, o governo apontou a Igreja de Jesus Shincheonji, onde fiéis acompanhavam os cultos sentados no chão, ombro a ombro, como o epicentro do coronavírus no país. “Ficando perto de outras pessoas por mais do que 15 minutos, existe um risco. Quanto mais gente tiver e mais próximo, maior o risco", afirma Bittencourt, da USP.

Já em setembro, o governo de Seul anunciou que pediria indenização de US$ 4 milhões a uma igreja da cidade, acusada de dificultar ações de controle e provocar novo surto de covid na região. O líder religioso chegou a ser preso em agosto, sob suspeita de esconder casos da doença e impedir seguidores de realizar testes.

Aval a cultos religiosos também foi parar na Justiça nos EUA

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Nos Estados Unidos, a discussão sobre o fechamento de cultos religiosos também foi parar na Justiça. Em novembro, a Suprema Corte proibiu o governador do estado de Nova York de impor restrições, com base na defesa da liberdade de culto citada na Constituição.

Nesse julgamento, a Associação Médica Americana (AMA) foi contrária à reabertura de tenplos e à realização de cultos na pandemia. Um dos casos lembrados pela entidade é o de uma igreja rural no Arkansas, onde 35 dos 92 participantes pegaram covid em uma celebração em março. Três morreram.

Segundo a AMA, eventos religiosos reúnem uma série de “fatores de risco” para proliferação da doença. “Grande grupos de pessoas entram em um recinto fechado, sentam-se ou ficam em pé perto um do outro por uma quantidade significativa de tempo e, normalmente, falam e cantam”, argumenta.

A decisão do tribunal de liberar cultos estava em desacordo com outras anteriores a respeito de igrejas na Califórnia e em Nevada, mas seu quadro de membros mudou desde então. Indicada por Donald Trump poucas semanas antes da eleição, a juíza Amy Coney Barrett teve papel decisivo na votação apertada, de 5 a 4.

Em outras partes do mundo, eventos tradicionais têm sido adaptados por causa da covid. Por causa da pandemia, o papa Francisco celebrou a última Semana Santa a portas fechadas pelo segundo ano consecutivo, sem multidões de fiéis que marcam as missas.

Um dos países europeus mais atingidos pelo vírus, a Itália iniciou no sábado, 3, um confinamento restrito -- com todo o território considerado "zona vermelha". No mesmo dia, a França iniciou o terceiro lockdown desde o início do surto, mas o presidente Emmanuel Macron declarou que as regras seriam aplicadas com menos rigor no fim de semana da Páscoa.

Em Jerusalém, os locais religiosos que haviam sido fechados no ano passado agora ficaram abertos, mas para um número limitado de fiéis. Israel, no entanto, não recebeu o fluxo normal de peregrinos já que as viagens para o país continuam restritas. O país também tem a maior proporção da população já vacinada do mundo (60%).

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