Angelita Habr-Gama e uma história feita de acaso e dedicação

Uma das principais cirurgiãs do País conta sua trajetória em livro escrito por Ignácio de Loyola Brandão

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Foto do author Maria Fernanda Rodrigues
Por Maria Fernanda Rodrigues
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Angelita Habr-Gama sabe que a vida é fruto de determinação, estudo, trabalho e dedicação. Mas sabe também que tem algo mais. O acaso, uma força maior. Algo – que foi ajudando a abrir o caminho para que ela pudesse, com essa determinação, estudo, trabalho e dedicação, se tornar uma das mais respeitas médicas do mundo.

Porque, para começar, se no longínquo 1908 sua avó não tivesse pego uma conjuntivite no navio que a levava com o marido e a filhinha de 2 anos do Líbano aos Estados Unidos, a família teria recomeçado a vida e fincado raízes lá – e não no Brasil, para onde o casal decidiu ir depois desse contratempo num porto da França que mudou o curso dessa história.

Com mais de 80 anos, Angelita Habr-Gama é uma das principais cirurgiãs do Brasil e opera três vezes por semana; na foto, ela segura o livro escrito por Ignácio de Loyola Brandão sobre a sua vida Foto: HÉLVIO ROMERO / ESTADÃO

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Chegando aqui, viveram primeiro no Maranhão, onde um deles tinha sobrinhos. Sem se adaptar, partiram, já com um novo filho, para o Pará, onde vivia o primo do outro. A vida em Belém também não agradou, e o destino seguinte foi a Ilha de Marajó. Lá as coisas se acalmaram: os negócios e a fazenda prosperaram, a vida seguiu seu rumo e quando Nagibi, a garotinha que embarcou no Líbano com os pais, fez 16 anos, ela se casou com Kalil, seu conterrâneo.

Nasceram os filhos, eles cresceram, e então uma tragédia, a morte de Nader, aos 14, de apendicite supurada, levou a família a empreender uma nova viagem com medo de que o mesmo acontecesse com as outras crianças. Angelita estava com 6 anos. O destino, definitivo, foi São Paulo. O ano era 1939.

Angelita conta isso tudo numa tarde em seu consultório, às vésperas do lançamento de Não, Não é Resposta. Ela autografa seu livro de memórias ao lado de Ignácio de Loyola Brandão, que o escreveu, neste domingo, às 18 horas, na Casa Charlô, em São Paulo.

Dona de um currículo vastíssimo, referência mundial no campo da coloproctologia e requisitada e homenageada no mundo todo, Angelita achava sua vida sem graça – e olha que ela integrou a equipe que cuidou de Tancredo Neves –, diferente da de um empresário, por exemplo, e relutou quando o amigo Antônio Ermírio de Moraes (1928-2014) sugeriu que ela fizesse uma biografia. Ele tinha lançado a dele, escrita por José Pastore, e disse que o economista, e amigo comum, poderia cuidar da dela também. Foi Pastore quem sugeriu depois o nome de Ignácio de Loyola Brandão e ela foi cedendo.

Imortal da Academia Brasileira de Letras e cronista do Caderno 2, Loyola Brandão pesquisou, entrevistou a médica e pessoas próximas, escreveu e entregou os originais. Ela gostou, mas logo foi assaltada pelo pensamento de “que bobagem” e engavetou aquelas páginas. Foi cobrada novamente por Pastore e agora está convencida de que o livro pode ter alguma utilidade – sobretudo porque ela acha que ele pode ajudar as mulheres, principalmente, a entender que elas devem ser elas mesmas, que devem se valorizar e só aceitar o não quando ele for coerente, e não porque são mulheres.

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Essa história ela conhece bem. Em casa, quando disse que não seria professora, como era esperado, e que prestaria vestibular para Medicina, ouviu do pai que não passaria. Passou em 8.º lugar na USP, em 1952. Um detalhe, e aí voltamos ao começo da história, ao acaso: a escolha não foi por vocação, chamado ou por tradição familiar, mas porque suas amigas do colégio, com quem jogava vôlei, estavam todas escolhendo essa profissão. “Eu era uma caipirona, não sabia o que era Medicina e nunca tinha pisado num hospital. Fui no bolo”, conta – e ri.

No fim do curso, quando disse que tentaria uma vaga de residência em cirurgia, e não em clínica, ouviu do professor que era melhor não, que seria um desperdício de vaga porque mais cedo ou mais tarde ela casaria e teria filhos. Não aceitou, se inscreveu e passou.

A escolha da especialização também surgiu sem muito planejamento, já que ela gostava de tudo durante o curso. Foi em um congresso internacional de proctologia, em São Paulo, em 1960, que ela se encantou com a fala de alguns professores do St. Mark’s Hospital, de Londres. E lá foi ela, depois de ouvir que aquele era um hospital de homens e depois de muito insistir dizendo que era uma mulher diferente, começar, na segunda tentativa, a especialização num dos melhores hospitais nessa área.

Anos depois, na Escócia, ao iniciar uma nova bolsa de estudo, foi recebida, com susto, pelos responsáveis. “Dr. Habr-Gama, a senhora é mulher!”. E respondeu: “Eu não vou voltar”.

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Mais cedo ou mais tarde Angelita se casaria, sim, mas ela e o marido Joaquim Gama, também médico, nunca quiseram ter filhos. “Gosto muito de criança, mas não tenho vocação maternal. A mulher tem uma ligação com o filho que é maior do que com a profissão. Minha vocação é o trabalho e eu me entreguei à Medicina”, diz.

O livro que ela lança agora conta essas e muitas outras histórias, como os bastidores da internação de Tancredo Neves (1910-1985). Foi Angelita, aliás, a única mulher na equipe médica, que foi dizer à dona Risoleta que não havia mais esperanças. A trajetória familiar, marcada por luta e trabalho, também ganha destaque no volume. “Meus pais trabalharam duro e isso faz a criança ver que a vida não é brincadeira. Cresci nesse ambiente de trabalho. Essa foi uma herança deles”, comenta agora.

Angelita Gama visitou recentemente o túmulo do irmão e conta que seu primeiro pensamento, lá, foi que a morte dele provou seu crescimento. “Veja só o que é a vida... Temos que fazer a nossa parte, mas não é só a nossa parte que vai fazer a nossa vida. Existe algo superior, que você não consegue mudar”, diz Angelita, católica não praticante para quem, à medida que o tempo passa, a religião vai ganhando “aspectos controversos e discutíveis”. “Acredito num deus, algo que existe fora da nossa vontade, e acho que alguma coisa é determinada e o resto é feito”, resume.

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Perto dos 90 – ela prefere não revelar a idade –, Angelita opera terça, quinta e sábado no Hospital Oswaldo Cruz e atende todos os dias da semana. O trabalho é sua vida e seu hobby, e a idade pouco importa para ela. “Idade não é o que você aparenta ou o que está na sua certidão de nascimento. Idade é o que você sente e pensa. E eu penso jovem. Para mim, a vida está sempre gostosa, sempre tem alguma coisa para aprender”, finaliza.

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