Só 28% dos aparelhos usados por pacientes com deficiência em SP foram pagos pelo governo, diz estudo

Relatório da OMS mostrou problemas de acesso a itens como equipamentos auditivos e cadeiras de rodas; quase metade teve de pagar do próprio bolso e outros 22% recorreram à ajuda de parentes e amigos

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Por Leon Ferrari
Atualização:

Só 28% dos equipamentos ou produtos usados por pacientes com deficiência em reabilitação do Sistema Único de Saúde (SUS), como cadeiras de roda e aparelhos auditivos, da cidade de São Paulo, foram cedidos pelo poder público, conforme relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), divulgado nesta segunda-feira, 16. Cerca de 47% dos produtos foram comprados com recurso próprio e outros 22% com a ajuda de parentes e amigos.

Homem recebe ajuda para entrar em ônibus;quase um bilhão de pessoas não têm acesso a produtos de auxílio a deficiências Foto: Fabio Motta/Estadão - 31/08/16

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No mundo, a média de pagamentos do próprio bolso foi de 65,5% dos produtos. Altos custos, baixa disponibilidade e falta de suporte foram elencadas as principais barreiras ao acesso. Em São Paulo, diz o documento, 50% dos pacientes em reabilitação precisava de produtos assistivos - excluindo óculos. Aproximadamente 22% relataram necessidade de aparelhos auditivos. 

O estudo recolheu dados de 35 países, onde mais de 330 mil pessoas foram ouvidas. No Brasil, foram 929 entrevistados. Procurados, o Ministério da Saúde e as secretaria municipal da Saúde de São Paulo não se manifestaram até a publicação da reportagem. 

Em nota, o governo de São Paulo destacou que a responsabilidade de aquisição dos produtos é compartilhada entre os três entes federativos. A gestão diz aplicar, anualmente, R$ 14,4 milhões para compra deles. Também falou que, ao final de 2021, investiu R$ 7,4 milhões extras para zerar a fila de órteses e próteses nos equipamentos estaduais, como nas unidades da Rede Lucy Montoro e os Hospitais Universitários ligados ao Estado.

Tecnologia assistiva é o termo usado para produtos, recursos e serviços para pessoas com algum tipo de deficiência. Os produtos podem ser físicos, como cadeiras de rodas, óculos, aparelhos auditivos, próteses e órteses; e até digitais, na forma de softwares e aplicativos que ajudam a comunicação. Segundo especialistas, o acesso a esses aparelhos pode ajudar no desenvolvimento do paciente, além de melhorar na sua qualidade de vida. 

Homem recebe ajuda para entrar em ônibus;quase um bilhão de pessoas não têm acesso a produtos de auxílio a deficiências Foto: Fabio Motta/Estadão - 31/08/16

Na medida em que a população envelhece e a prevalência de doenças não transmissíveis aumenta, a estimativa é de que o número de pessoas que precisam de um ou mais desses produtos aumente para 3,5 bilhões até 2050. A necessidade também cresce durante crises humanitárias, como a guerra na Ucrânia, mas o fornecimento dessas tecnologias ainda não é prioritário na resposta a emergências, destacaram os pesquisadores.

Durante a vida, é provável que todas as pessoas necessitem de ao menos uma tecnologia assistiva. O relatório, no entanto, destaca que, embora a necessidade venha aumentando com o tempo - o que está intimamente ligado com a tendência de envelhecimento populacional -, o acesso não tem sido suficiente.

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O paulistano Marco Pellegrini, de 57 anos, que já foi secretário estadual e nacional dos direitos das pessoas com deficiência, ficou tetraplégico aos 27, após levar um tiro em um assalto no ano de 1991. De lá para cá, ele conta ter visto e vivido a evolução das tecnologias assistivas. “Os anos 90 eram os anos do ‘faça você mesmo’. Aqui não tinha nada.”

Ficar numa cama, sendo virado de lado a cada duas horas, como aconselhado pelo médico, não era uma opção. Junto a amigos, passou a criar seus próprios produtos assistivos - algo que é comum na vida de quem tinha dificuldades funcionais -, para poder digitar no computador, usar o telefone, sair da cama e dirigir com autonomia, por exemplo. “O pai da invenção é a necessidade. E a minha necessidade era muito grande, porque eu tinha um filho pequeno e outro para nascer.”

A primeira cadeira de rodas controlada pelo queixo veio em 1994. Para adquiri-la foi necessário uma viagem de quase 10 mil km até a Alemanha, além de desembolsar €4 mil, o que só foi possível vendendo um carro, fazendo rifas e com doações de amigos. Com a cadeira e mais alguns produtos improvisados, Pellegrini voltou ao trabalho e não parou mais. 

A partir de 2000, com o avanço de políticas públicas na área, Pellegrini viu a indústria se interessar pelos produtos e passarem a desenvolvê-lo. Muito mudou desde então. Atualmente, ele conta com inúmeras tecnologias assistivas e uma casa automatizada. O recurso, sempre próprio - alguns dispositivos, como elevadores, chegam a custar R$20 mil. 

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“É mais barato do que não viver”, destaca. “Para quem tem algum tipo de limitação de mobilidade ou sensorial, ter uma tecnologia assistiva faz a diferença entre poder ou não executar uma tarefa. Poder ou não ter autonomia.”

“A tecnologia assistiva abre as portas para a educação de crianças com deficiência, emprego e interação social para adultos que vivem com deficiência, e uma vida independente e digna para os idosos”, destaca o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em comunicado à imprensa. “Apelamos a todos os países para que financiem e priorizem o acesso à tecnologia assistiva e dêem a todos a chance de viver de acordo com seu potencial."

Já Catherine Russell, diretora-executiva da Unicef, frisou que há quase quase 240 milhões de crianças com deficiências no mundo. “Negar às crianças o direito aos produtos de que precisam para prosperar não prejudica apenas as crianças individualmente, mas priva suas famílias e comunidade de tudo o que poderiam contribuir se suas necessidades fossem atendidas”, explicou. A falta de acesso, alertou, deixa-as sujeitas à discriminação e também em risco maior de trabalho infantil.

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Brasil

Diretora do Centro Colaborador da OMS para Reabilitação e presidente do Conselho Diretor do Instituto de Medicina Física e Reabilitação da USP (Imrea), Linamara Rizzo Battistella, que colaborou com o relatório,diz que São Paulo é o Estado que hoje consegue promover com “mais justiça” a oferta de tecnologias assistivas. “Mas o poder público estadual e municipal depende de uma lista de produtos definidos pelo governo federal. Uma lista que está desatualizada. Perversa, porque não oferece todos os itens que poderiam ser importantes para inclusão social. Mas, sobretudo, em inconformidade com os preços de mercado.”

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Ela destaca que a falha na política pública também se evidencia na dificuldade de reter o profissional, de qualificá-lo e fazer com que seja executor de avaliações funcionais adequadas às tecnologias assistivas. E na disparidade regional. “Centros especializados em reabilitação não estão disponíveis dentro de uma grande parte da nossa federação. É mais fácil encontrá-los nas capitais.”

Além da atualização de lista do SUS, com inclusão de novos produtos, Linamara indica a necessidade de criação de um “grande hub de inovação em tecnologias assistivas”, com financiamento de órgãos de controle e dos ministérios. Ela também pede investimento na reciclagem de produtos que são destacados. “Nós insistimos em descartar produtos que estão em excelentes condições e que poderiam servir para outros pacientes, bastando com isso uma higienização, uma retificação.” 

Ciro Pavarina, coordenador da Oficina Ortopédica da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), explica que as tecnologias assistivas permitem a realização de atividades cotidianas. Por isso, destaca a necessidade de uma mudança de visão sobre o recurso público alocado em função delas. “A falta de acesso impacta diretamente a economia.” Isso porque a pessoa se mantém improdutiva. Nesse sentido, ele frisa que o acesso negado custa mais caro no longo prazo do que a aquisição de um produto com alto custo agregado devido à especialização. 

Pavarina também fala que alguns danos da necessidade não suprida podem ser irrecuperáveis. “Existem situações que se você não tem a adequação a essa deficiência, ela se torna progressiva. Ficam sequelas irreversíveis às vezes.” 

Índice de Desenvolvimento Humano

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A taxa estimada de necessidade de uma ou mais tecnologias assistivas foi de 31,3% - três em cada dez vão precisar de um aparelho ou equipamento para lidar com alguma deficiência. Quando excluídos os óculos, o produto mais demandado, esse índice cai para 11,3%.

Essa taxa, incluindo óculos, foi influenciada pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que leva em conta atributos como expectativa de vida, educação e renda, das nações. Passou de 14,4% em países de pontuação baixa, para55,6% nos de muito alta. Ao excluir óculos, não houve variação significativa na prevalência de necessidade.

A distância para adquirir produtos, porém, também chama atenção. Em média, os pacientes tiveram de percorrer 25 km (68,2%). Em alguns países, mais de um em cada cinco usuários percorreu mais de 100 km.

Ao final do relatório, as instituições listam dez ações concretas para garantir o acesso aos produtos assistivos:

  1. Melhorar o acesso nos sistemas de educação, saúde e assistência social;
  2. Garantir a disponibilidade, segurança, eficácia e acessibilidade dos produtos assistivos;
  3. Ampliar, diversificar e melhorar a capacidade da força de trabalho capacitada sobre produtos assistivos;
  4. Envolver ativamente os usuários de tecnologias assistivas e suas famílias;
  5. Aumentar a conscientização pública e combater o estigma;
  6. Investir em dados e políticas baseadas em evidências;
  7. Investir em pesquisa e inovação;
  8. Desenvolver e investir em ambientes acessíveis;
  9. Incluir tecnologia assistiva como resposta humanitária;
  10. Fornecer assistência técnica e econômica por meio de cooperação internacional para apoiar os esforços nacionais.