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Após mortes, Saúde decide fechar manicômio em Caicó-RN

Por Agencia Estado
Atualização:

As portas destrancadas, os quartos cheirando a álcool, o bate-papo descontraído dos funcionários e o movimento lento de pacientes pelo pátio de terra do Hospital Psiquiátrico Dr. Milton Marinho, na cidade de Caicó, no Rio Grande do Norte, ocultam a história de horrores da instituição. Na casa amarela no topo de uma colina, morreram cinco internos nos últimos seis anos devido a maus-tratos, segundo denúncias de entidades de saúde e direitos humanos. Os casos nunca esclarecidos levaram o Conselho Federal de Psicologia (CFP), em audiência anteontem no Ministério da Saúde, a pedir o fechamento do local. O governo concordou. O pedido foi feito pouco mais de uma semana depois de o Brasil ter recebido uma condenação inédita da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O motivo foi a morte, em 1999, de Damião Ximenes Lopes, de 30 anos, em uma clínica conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS) em Sobral, no Ceará. Pela sentença da entidade internacional, que pela primeira vez reconheceu como violação dos direitos humanos um caso na área de saúde mental, o governo brasileiro terá de pagar US$ 146 mil à família, assegurar a punição dos culpados e implementar mudanças no sistema de assistência psiquiátrica. O processo, já em andamento, tem despertado polêmica entre psiquiatras, psicólogos, dirigentes de hospitais e grupos de pacientes. Prevê, sobretudo, a redução das internações em hospitais psiquiátricos e a discussão do papel dessas instituições - ou mesmo de sua existência. Vinte mil pacientes estão internados em 228 hospitais psiquiátricos no País. Há 5 anos, eram 60 mil leitos. Hoje, são 40 mil. O único consenso é que os manicômios tradicionais, misto de asilo e má assistência, não devem mais existir. Mas, por enquanto, eles sobrevivem em várias regiões do Brasil, acumulando denúncias que vão de tratamento precário a maus-tratos e, em alguns casos, mortes. "É preciso aprofundar a discussão, retomar a fiscalização dos hospitais e exigir rigor na investigação dessas mortes, que continuam ocorrendo e das quais ficamos sabendo apenas quando chegam por denúncias de funcionários ou parentes", afirma a presidente do CFP, Ana Bock. Neste ano, segundo o conselho, foram notificados seis casos em Estados como Rio Grande do Sul, Pernambuco e Goiás. Em geral, os óbitos por maus-tratos são registrados como "morte súbita" pelas instituições. As famílias, na maioria carentes e moradoras de cidades afastadas, pouco contestam. Um instrumento para verificar a realidade dessas instituições seria o Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (Pnash). Deveria ser feito todos os anos, mas está atrasado - não foi feito em 2005 e, neste ano, deverá começar somente no mês que vem. Para os críticos dos manicômios, nada mudou no País desde a morte de Damião Ximenes, há sete anos. Para quem administra as instituições, casos como esse são acidentes raros, provocados pela falta de verba e pelo pouco interesse do governo em dar recursos para melhor assistência hospitalar, necessária no caso de pacientes agudos (em crise). Queimado na Cama - Assim como aconteceu em Sobral (que, com a morte de Ximenes, passou por uma intervenção, transformando-se numa unidade modelo), a instituição de Caicó não é mais administrada por uma fundação privada. Está nas mãos do Estado e, se depender do ministério, será fechada para virar um Centro de Apoio Psicossocial (Caps) - espécie de ambulatório dentro do novo modelo de atendimento, no qual os pacientes são atendidos, mas voltam para casa. "Muita coisa tinha de ser mudada e hoje tentamos funcionar de acordo com a reforma psiquiátrica, que prevê menos tempo de internação e acompanhamento de uma equipe multidisciplinar", alega Maria Lúcia Dantas, administradora do Hospital Dr. Milton Marinho. O argumento esclarece pouco a respeito do caso de Sandro Fragoso, um mecânico de 22 anos que morreu queimado amarrado a uma cama do Milton Marinho. Essa história macabra motivou o pedido do CFP apresentado anteontem. "Foi aqui", diz Maria Lúcia, apontando um quarto escuro, com marcas de reboco em pontos que serviam de apoio para grades. Antes, os pacientes ficavam ali confinados, sem luz; agora circulam pelos corredores. "Pelo que aconteceu, nossa imagem está muito ruim. Somos vistos como os que maltratam, que matam. É um processo lento mudar essa mentalidade", diz a administradora, que assumiu a instituição neste ano. Casos Crônicos - Pelo projeto do Ministério da Saúde, o rumo a seguir está traçado: uma rede com cada vez menos internações, por tempo mais curto; ambulatórios espalhados pelas cidades, para adultos, crianças e dependentes químicos; e residências terapêuticas, como são chamadas as casas que acomodam de cinco a dez pacientes sob acompanhamento. "O modelo anterior, baseado na assistência hospitalar, não é defensável. Agora, o hospital tem sua função. Não são todos os pacientes que podem ser atendidos em ambulatórios, como alguns crônicos. Do modo como está sendo feita a desativação dos hospitais, falta assistência", afirma João Alberto Carvalho, vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria.

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