Arthur sorri. E renova a fé de mais de cem mães

Aplicativo se transforma em arma para dar força às mães de bebês com microcefalia

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Por Luísa Martins
Atualização:
Clima é de cumplicidade durante encontro; mães também trocam informações e gestos de solidariedade Foto: Leo Caldas

RECIFE - São 2h25 e o celular rasga o silêncio da madrugada. “Meninas, Arthur acaba de dar seu primeiro sorriso”, escreve a auxiliar de serviços gerais Rozilene Mesquita, de 39 anos, sobre o filho de 4 meses. Do outro lado do telefone, dezenas de mães acordadas comemoram e renovam a esperança de que, em algum momento, seus filhos – todos diagnosticados com microcefalia em Pernambuco – também riam.

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O aplicativo WhatsApp se transformou em uma arma poderosa de força e autoestima para essas mulheres. Afeto, acolhimento e pertença na ponta dos dedos, online. Hoje, são quase cem mães que partilham experiências, preocupações, necessidades e conquistas.

As dificuldades de assistência que relatam enfrentar fez com que o grupo, batizado União de Mães de Anjos (UMA), se politizasse: vai transformar-se em uma ONG vinculada à Aliança de Mães e Famílias Raras (Amar), que atende familiares de crianças com doenças pouco comuns. “Depois desse surto, todos falam das crianças com microcefalia. É uma oportunidade interessante para chamar a atenção das autoridades e cobrar mais políticas para as famílias raras”, opina a vice-presidente da Amar, Daniela Rorato.

Assim, quem sabe, as mães de bebês com microcefalia – a maioria é de baixa renda – consigam pressionar o governo para que o transporte até o Recife não esteja restrito a horários ingratos ou limitado a poucas vezes por semana, fazendo-as pagar as passagens do próprio bolso. “Todos os dias gasto R$ 50 para vir de Goiana (a uma hora da capital) para cá. Já não tenho mais a quem pedir”, lamenta Rosicláudia Souza, mãe de Carla Vitória, de 4 meses.

Ou para que se acelere o moroso processo de aposentadoria dos bebês: apenas duas das dezenas de mulheres ouvidas pelo Estado já tiveram concedido algum tipo de benefício financeiro. Outra bandeira da UMA é lutar pela regulamentação da profissão de cuidador – desse modo, quem teve de largar os empregos para tomar conta dos filhos poderia ter alguma fonte de renda.

Cumplicidade. Apesar dos percalços, o clima entre as novas amigas é de cumplicidade e diversão. Na quinta-feira, dia em que costumam se reunir na Fundação Altino Ventura (FAV), festejaram os “mêsversários” de Daniel, Laura e João. “Você está vendo alguém triste aqui?”, indaga Germana Nascimento, de 24 anos, mãe de Guilherme, de 4 meses.

Mas nem sempre é possível. A recepcionista Daniele Santos, de 29 anos, não pôde esconder a decepção com o marido logo após o nascimento de Juan Pedro, hoje com 2 meses. Foi embora de casa com a televisão debaixo do braço: o bebê chorava demais e atrapalhava sua concentração no jogo de futebol. “Tenho muitos momentos de solidão, mas as meninas conseguem me ajudar”, diz ela. O grupo de mães também veio para preencher um vazio na vida da estudante de contabilidade Bruna Thamires, de 22 anos. Há quatro meses, quando Enzo Luiz nasceu, os amigos próximos foram visitá-lo e, ao vê-lo, nunca mais voltaram. “A UMA me ajudou a ver que não é por uma deficiência que a gente vai excluir o menino. Hoje, a gente leva ele para todo lugar.”

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Grupos são importantes para mulheres, diz médica

Grupos de apoio, sejam online ou offline, são importantes para que as mães dividam “o peso que carregam nos ombros”, diz a diretora médica da Fundação Altino Ventura (FAV), a pediatra Kátia Guimarães. A FAV presta atendimento multidisciplinar aos bebês por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). “É importante que elas não se sintam sozinhas na luta contra o estigma.” Segundo ela, quanto mais cedo começam as provocações auditivas, visuais, físicas e intelectuais, mais chances o bebê tem de recuperar funções mais finas do cérebro. “As mães aprendem com os médicos e compartilham umas com as outras técnicas de estimulação e relaxamento.”

O WhatsApp também ajuda nas questões clínicas. Germana achava um charme quando seu filho Guilherme tremelicava uma perna – achava que era um reflexo natural, coisa de recém-nascido. “Mas, quando uma das garotas compartilhou a notícia de que poderia ser um indício convulsivo, fiquei alerta”, conta ela, que contraiu o vírus da zika na 12.ª semana de gestação.

Germana não podia engravidar – ou, pelo menos, era o que diziam os médicos que a diagnosticaram com útero retrovertido e trompas obstruídas. “Falavam que meu corpo não sustentaria um feto, então considero o Guilherme um milagre.” Quando, 15 dias antes do parto, veio a notícia da microcefalia, a corretora de imóveis, cujo sonho era ser mãe, perdeu o chão. “Mas logo em seguida engoli o choro e pensei: se essa é a minha missão, assim será. E posso garantir que a microcefalia não é o fim. Para mim, meu bebê não difere em nada das outras crianças”, diz.

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Foi ela quem iniciou o grupo, quando conheceu outra mãe de bebê com a má-formação na fila do atendimento do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, no Recife, e sugeriu que trocassem números de telefone. Conforme iam conhecendo outras mulheres na mesma situação, as convidavam para participar também. Hoje o chat funciona 24 horas e chega a 500 mensagens em poucos minutos. “Nosso principal objetivo é celebrar a maternidade e praticar a solidariedade”, diz Germana.

Bruna Thamires, por exemplo, acabou nunca usando um sutiã de amamentação, que doou para uma amiga de grupo. Quando Enzo Luiz finalizou o tratamento para o refluxo, os remédios que sobraram também foram repassados para outra companheira, cujo bebê tinha o mesmo problema. Sem contar as campanhas de arrecadação, que já renderam 600 caixas de leite em pó e quilos de fraldas.

“Poder ajudar mães com mais dificuldade é o mais gratificante”, diz Gleyse Cavalcanti, de 27 anos, mãe de Maria Giovana, de 4 meses, e de outros três meninos, de 8, 6 e 1 ano. Quando leu o laudo de microcefalia da filha, o medo maior foi perdê-la. “Quando ela nasceu, vi que, apesar do perímetro encefálico menor, era uma menina saudável. E então me acalmei”, conta ela, que também pretende sair do emprego como agente de um pedágio para dar conta das terapias que Giovana exige. “Não imagino que ela seja diferente das outras crianças. Acho que ela vai falar, andar, interagir e namorar normalmente”, projeta.

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Emoção. As mães da UMA mostram que a força está no sorriso e na resiliência. Aprenderam, com seus bebês e umas com as outras, que cada dia é um dia. Toda conquista é comemorada. “Ele tinha as mãozinhas fechadas e hoje já consegue abrir, consegue segurar um lápis. Pode parecer banal, mas é muito emocionante”, conta Daniele sobre o filho Juan Pedro. 

Ela já aprendeu a torcer o nariz para quem aponta ou lança olhares de preconceito – como a vez em que ouviu, carregando o filho no colo, que ele “até era bonitinho”. “Por causa do grupo, não consigo mais aceitar a pena das pessoas. Pena? Pena por quê? Se meu filho fosse doente, ele estaria internado. Para mim, é uma criança normal. Tem dois olhos, duas pernas, duas mãos. Se é bonito ou feio, não importa. É um ser humano”, diz, fortalecida. 

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