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Psiquiatria e sociedade

Opinião|As mortes normais

A pergunta da vez é quando a vida voltará ao normal. Modelos matemáticos e algoritmos se sucedem tentando encontrar uma resposta

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Será em maio? Agosto? Só em 2022? A pergunta da vez é quando a vida voltará ao normal. Modelos matemáticos e algoritmos se sucedem tentando encontrar uma resposta. Mas é difícil precisar uma data. Principalmente porque estão procurando no lugar errado. A resposta está em outra equação, que lida não com valores numéricos, mas com valores humanos.

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Trata-se da equação que surge diante dos dilemas morais. Esses becos sem saída éticos em que nos vemos presos quando valores entram em conflito. Seguir a lei ou ajudar alguém? Salvar a mãe ou o bebê? Não existe saída certa para eles - por isso mesmo são dilemas. Mas a filosofia moral tenta encontrar ao menos saídas justificáveis.

Segundo a escola do Utilitarismo, por exemplo, o que importa na decisão é seu resultado. Esqueça as intenções. Aquilo que fizer bem para mais gente, ou que prejudicar menos, é o certo. Parece bastante intuitivo, e ajuda a pensar em várias situações da vida. Mas assim como todas as escolas, ela tropeça diante de dilemas.

Tal dificuldade fica clara no famoso experimento mental do dilema do bonde. Imagine que um bonde desgovernado irá atropelar e matar cinco pessoas. Você percebe que se puxar uma alavanca pode desviá-lo, e apenas uma pessoa morrerá. Você puxaria a tal alavanca? A maioria das pessoas é utilitarista nessa hora, e diz que sim. Morrer um é melhor do que morrerem cinco. Mas e se tivesse que empurrar uma pessoa de cima de uma ponte para que caísse sobre a alavanca e parasse o bonde? Ele não atropelaria ninguém, mas a infeliz morreria na queda. A maioria das pessoas acha que aí é demais. Tudo bem trocar cinco mortes por uma, desde que essa não seja tão aversiva. O utilitarismo é limitado pelas emoções.

Não nos damos conta, mas fazemos essas contas o tempo todo. Um grande exemplo é o trânsito. Por que não propomos banir os carros mesmo diante de mais de um milhão de acidentes fatais por ano no mundo? Porque consideramos que se pagam.

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É um cálculo utilitarista: banir os carros traria tanto prejuízo que viramos o rosto para o outro lado. Mas só conseguimos fazer isso porque as mortes não acontecem todas de uma vez, diante dos nossos olhos. São distribuídas no ano; há tempo para alguma tentativa de socorro; podemos velar os mortos e enterrá-los adequadamente. Elas não têm tanto impacto emocional. Admitimos sua ocorrência da mesma forma que puxamos a alavanca no dilema do bonde.

É o oposto do que ocorre com as mortes causadas pela covid-19. Nem todos percebem, mas estamos aqui também diante de um dilema moral. O custo de parar o mundo para garantir o distanciamento físico e refrear a pandemia é altíssimo. Não podemos nos iludir achando que é só uma questão econômica: haverá mortes por conta dessa escolha. Perda de assistência médica, violência doméstica, suicídio. Mas essas mortes nos parecem mais aceitáveis do que as causadas pela covid-19. A velocidade com que o vírus se espalha faz muita gente morrer de uma vez; a sobrecarga dos hospitais impede que haja socorro para todos; os mortos não podem ser velados. A angústia é tão grande que nem sequer cogitamos aceitar essas mortes para evitar outras. Não é possível ser utilitarista diante de uma tragédia tão carregada emocionalmente. Mesmo que soubéssemos que menos gente morreria no total se não fizéssemos nada agora essa seria uma opção intolerável.

Mas em algum momento a equação irá se inverter. Os esforços conjuntos trarão mais cedo ou mais tarde uma desaceleração do contágio, proporcionarão o aumento de vagas de UTI e do suprimento de respiradores, algum remédio se mostrará eficaz. Com isso, o impacto emocional da covid-19 irá se reduzir aos poucos. Somar-se-á o tão esperado achatamento da curva, que também desequilibrará a equação ao distribuir as mortes ao longo do tempo e dar chance para que a maioria receba tratamento. Ou seja, um tipo de morte muito mais parecido com os acidentes de trânsito. Exatamente o tipo que aceitamos em troca de outras.

Então as mortes presentes não parecerão piores do que as futuras. Quando chegarmos a esse ponto, a vida terá voltado ao normal.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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