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Brasil e Espanha unem forças na astronomia para investigar a matéria escura

Países são responsáveis pela construção de um observatório astronômico, no leste espanhol, que tem como meta decifrar esse enigma científico que constitui mais de 80% da matéria do universo

Por Herton Escobar
Atualização:

No topo de uma montanha próxima a Teruel, no leste da Espanha, o sonho de um prêmio Nobel para o Brasil começa a tomar forma. É lá, no Pico do Abutre, a quase 2 mil metros de altitude, que um novo observatório astronômico está sendo construído pelos dois países com o objetivo de investigar um dos maiores enigmas científicos de todos os tempos: a natureza da matéria escura. Uma coisa que ninguém vê e ninguém sabe o que é, mas que constitui mais de 80% de toda a matéria do universo. Um problema que incomoda e fascina cientistas há quase oito décadas.

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O Observatório Astrofísico de Javalambre, batizado com o nome da cadeia de montanhas que o abriga, está em fase avançada de construção. O complexo todo, orçado em EU$ 30 milhões, está quase completo, com sala de controle, túneis, dormitórios e telescópios de apoio. Faltam as duas peças fundamentais: o telescópio T250, que está sendo montado na Bélgica, e a câmera J-PCAM, que foi projetada e está sendo construída parcialmente no Brasil - principal contribuição do País para o projeto, no valor de EU$ 5 milhões. 

Segundo Renato Dupke, do Observatório Nacional do Rio de Janeiro, será a segunda maior câmera do mundo, com uma resolução de 1,2 bilhão de pixels e pesando mais de uma tonelada. A previsão é que ela fique pronta só em 2014, mas que o observatório comece a operar já em 2013, com outros instrumentos.

A partir de 2015, com o telescópio e a câmera acoplados, o observatório dará início ao seu maior projeto de pesquisa: o Levantamento Astronômico de Javalambre sobre a Física da Aceleração do Universo (J-PAS, em inglês), que vai produzir um mapa tridimensional do céu, com a localização precisa de bilhões de estrelas, galáxias, aglomerados de galáxias e outros objetos espaciais, cuja posição e comportamento são influenciados pela matéria escura.

"Só te digo uma coisa: Queremos o Prêmio Nobel", diz o pesquisador Laerte Sodré, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo, um dos líderes do projeto. 

Um objetivo extremamente ambicioso, mas não tão pretensioso assim. "Se pode sair um Prêmio Nobel desse projeto? Certamente que sim", afirma Dupke, que divide a coordenação científica do J-PAS com o colega espanhol Narciso Benítez, do Instituto de Astrofísica de Andalucía. O projeto foi tema de uma reunião de quatro dias na semana passada, no IAG.

Não há dúvida de que aqueles que desvendarem o enigma da matéria escura serão candidatos fortíssimos ao Nobel. O J-PAS não terá como dizer do que é feita a matéria escura exatamente - algo que só a física de partículas poderá eventualmente responder -, mas poderá dar pistas importantes sobre seu comportamento, sua distribuição e sua influência sobre a evolução das galáxias e do universo. Informações essenciais para entender também sua estrutura. "Para saber do que é feita a matéria escura precisamos saber suas propriedades com muita precisão", explica Benítez.

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Matéria faltante. Na astrofísica e na cosmologia, ciências que estudam a evolução e o funcionamento do universo, características como velocidade, luminosidade, massa, temperatura, tempo e distância estão diretamente relacionadas. A descoberta da matéria escura - originalmente chamada de "matéria faltante" - deu-se em 1933 pelo astrônomo suíço Fritz Zwicky, que percebeu que a velocidade com que as galáxias se moviam no espaço era incompatível com a quantidade de matéria (massa) presente nelas e ao redor delas.

O problema é que a velocidade com que as galáxias giram e se movem dentro de um aglomerado é alta demais para a massa que conseguimos observar. Nessa velocidade, pelas leis da física, elas deveriam se desmantelar e se dispersar rapidamente, como um carro de corrida que se despedaça e "sai voando" de uma pista oval por andar rápido demais. 

A única força capaz de segurar as coisas nos seus devidos lugares no espaço é a gravidade, e a força da gravidade depende da massa de um objeto. O problema é que a quantidade de matéria visível nessas galáxias e aglomerados não é nem de perto suficiente para gerar atração gravitacional suficiente para evitar que as galáxias se desmantelem ou saiam voando por aí. Algum cabo invisível está segurando o carro na pista. É a matéria escura.

O adjetivo "escuro" refere-se ao fato de que essa matéria não emite nem absorve luz. É completamente invisível. Só sabemos da sua existência por causa dos seus efeitos gravitacionais, confirmados por várias linhas independentes de pesquisa nas últimas décadas. Há alguma coisa lá fora, só não sabemos o que é. E o mais assustador é que essa coisa não é apenas um detalhe. Pelo contrário, as observações indicam que há cinco vezes mais matéria escura do que matéria visível. Ou seja: tudo que a gente enxerga corresponde a menos de 20% de tudo que existe de fato no universo. 

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É como se não soubéssemos da existência do ar, com a diferença de que o ar, apesar de invisível, é feito de matéria comum (átomos de hidrogênio, oxigênio, etc). Já no caso da matéria escura, os cientistas não têm a menor ideia do que ela é feita. 

"Não sabemos o que é, mas é algo que precisamos levar em conta em todos os nossos cálculos, pois sem a matéria escura nada faz sentido; as teorias não batem com as observações", diz o astrofísico Rubens Machado, do IAG. "É um vexame astronômico", reconhece Dupke. 

Na prática, há duas possibilidades: Ou a matéria escura existe e as leis da física estão corretas ou a matéria escura não existe e as leis da física precisam ser revistas. A mais provável é a primeira opção, mas a segunda não está descartada. "A opinião majoritária é que a matéria escura existe, mas tem gente muito séria que acha que ela não é a explicação correta", reconhece Benítez. "O problema é que não há uma boa explicação alternativa. A matéria escura é a 'menos pior'."

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Vários estudos já foram publicados questionando a existência da matéria escura, pelo menos em escalas menores do que galáxias, mas nada conclusivo até agora. "Temos vários indícios independentes, baseados em técnicas distintas, que apontam na mesma direção, o que é uma indicação forte de que a matéria escura existe", avalia Machado. 

Ainda que não venham a fornecer respostas definitivas, os mapas e parâmetros medidos pelo J-PAS ajudarão a "fechar o cerco" sobre a matéria escura, permitindo descartar muitas das teorias que circulam por aí.

"Quem não procura não acha", argumenta Sodré, cobrando mais ousadia da ciência brasileira, que costuma trabalhar com questões mais periféricas. "Se não arriscarmos e não ousarmos a responder perguntas fundamentais não vamos chegar a lugar nenhum. Temos que meter as caras mesmo."

Uma parceria regada a amizade, ciência e tecnologia

A escolha do Brasil como parceiro da Espanha no projeto J-PAS deve-se a razões pessoais, profissionais e financeiras. Apesar dos recentes cortes no orçamento federal de ciência e tecnologia, o Brasil é um dos poucos países no mundo hoje com capacidade para investir em novos projetos científicos de grande porte, segundo o coordenador científico do projeto pela Espanha, Narciso Benítez. Os outros seriam China, Índia e Rússia.

Estados Unidos e Europa, apesar de investirem muito mais em ciência do que o Brasil, estão com seus orçamentos saturados, com pouco espaço para novos investimentos. "O Brasil tem dinheiro para investir e tem competência científica e tecnológica para trabalhar. É um parceiro ideal", explica Benítez. Apesar de ser sócio minoritário, em termos financeiros, o País terá direitos iguais de uso das instalações. "É uma sociedade igualitária em termos científicos", garante Benítez.

A participação do Brasil é de aproximadamente EU$ 5 milhões, num bolo de EU$ 30 milhões, pagos na forma da câmera J-PCAM. O dinheiro é de várias instituições e agências de fomento estaduais e federais. A câmera tem 14 CCDs (placas de captação de luz, como as que existem dentro de câmeras fotográficas digitais, só que muito mais avançadas). A parte que está sendo construída no Brasil, pela empresa Solunia, de Araraquara (SP), é a chamada "parte quente" da câmera, que não necessita de resfriamento. 

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Outro fator que pesou na escolha da sociedade transatlântica é que é muito mais divertido - e, consequentemente, produtivo - trabalhar com brasileiros, afirma Benítez, com todo respeito aos seus colegas europeus. Ele o brasileiro Renato Dupke, coordenador científico do projeto pelo Brasil, são amigos desde a década de 1980, quando estudaram física e matemática juntos na Universidade Estatal de Moscou M. V. Lomonossov, ainda nos tempos da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

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