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Opinião|Brincando com fogo

Brasil nem sequer decidiu possíveis cenários de coronavírus que pode enfrentar

Atualização:

No dia 18 de fevereiro, exatas três semanas atrás, a Itália tinha três casos de coronavírus e nenhuma morte. Vida normal. Hoje, a Itália tem mais de 10 mil casos com 631 mortes. O sistema de saúde das áreas mais afetadas está em colapso: pacientes são atendidos nos corredores de hospitais, praticamente não há mais leitos de UTI para internar pacientes mais graves e muitos deles, entubados, são tratados em salas de operação convertidas em UTIs. Muitos médicos e enfermeiros foram infectados e abandonaram seus postos. Para tentar retardar o alastramento da doença, a Itália colocou 60 milhões em isolamento e o país vive situação de caos. Da normalidade ao caos em 21 dias. 

Ministro da Saúde em entrevista sobre as medidas do governo contra o coronavírus Foto: Sergio LIMA / AFP

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A Itália não está sozinha. Processos semelhantes estão ocorrendo no Irã e na Coreia do Sul. França, Alemanha e Espanha podem estar no início desse processo - saberemos em uma ou duas semanas. Esses são fatos, não especulações ou modelos. 

Também é fato que o Estado de São Paulo, com 44 milhões de habitantes, tinha ontem 19 casos de coronavírus e 302 suspeitas. Isso demonstra que São Paulo ou outra cidade brasileira podem se encontrar em situação semelhante em três semanas. Veja bem: isso não quer dizer que teremos uma epidemia em três semanas, mas demonstra, sem sombra de dúvida, que essa é uma possibilidade real. Difícil de aceitar, mas absolutamente real.

Diante dessa possibilidade, há duas posturas possíveis. A primeira é esperar e ver se essa possibilidade se torna real. Nessa postura, à medida em que o cenário piorar reagiremos da melhor forma possível. É a típica reação de governos brasileiros: nomeio uma comissão para não dizer que não estou preocupado, divulgo algumas estatísticas, uma vez ao dia, testo algumas pessoas. Mas investimentos e medidas concretas deixo para depois, ou porque sou relapso ou porque tudo é muito difícil por aqui. Afinal, em três semanas talvez nada aconteça, Deus é brasileiro. 

A outra possibilidade é implementar de antemão um sistema capaz de lidar com um número grande de casos de modo a minimizar a possibilidade de colapso do sistema de saúde quando a epidemia chegar. É o que Inglaterra, França e Alemanha estão fazendo há mais de um mês. Mas o prazo é curto, são semanas para agir, não meses ou anos. Vejamos o que esses países estão fazendo. Não são segredos - os planos de ação desses países estão na internet e vêm sendo estudados por epidemiologistas brasileiros há algumas semanas. O problema é convencer o governo a se mexer. 

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A primeira providência é proteger os médicos e todo o corpo técnico dos postos de saúde e hospitais. Para isso, é preciso considerar todo caso de gripe viral como potencial caso de coronavírus e não somente viajantes que vieram do exterior. Isso quer dizer máscaras, luvas e todo o resto. Todos esses casos precisam ser testados para coronavírus e os positivos e seus contatos precisam ser colocados em isolamento. Na Inglaterra, se você acha que pode ter coronavírus, não deve ir a um centro de saúde, você liga e alguém te testa em casa. Isso porque, tanto na China como em outros países, os primeiros casos que chegaram sem serem identificados acabaram infectando médicos e enfermeiros o que, de saída, debilita o sistema de saúde.

Mas para isso é preciso que os testes para coronavírus estejam disponíveis em larga escala e o tempo de resposta seja curto. A Inglaterra já testou mais de 20 mil pacientes só para garantir a integridade do seu sistema de saúde. Por aqui, os testes ainda são feitos em pequenos lotes com enorme dificuldade por alguns laboratórios públicos. Seria preciso montar um sistema capaz de testar mais de 2 mil pessoas por dia com respostas disponíveis em 12 a 24 horas. Estamos longe disso.

Dos casos de coronavírus, aproximadamente 80% podem ser tratados em casa e a pessoa se recupera em uma ou duas semanas. Essas pessoas precisam ser identificadas, isoladas e seus contatos precisam ser testados. De novo a necessidade de um sistema de testes robusto. Os outros 20% precisam de tratamento hospitalar. O principal problema são os 6% de casos que precisam ser tratados com oxigênio e grande parte deles precisa ser entubada. Essas pessoas precisam de leitos de UTI e respiradores. Dois terços dessas pessoas (4%) se recuperam e as estatísticas mostram que 2% morrem.

O que tem ocorrido em todos os países é que esses pacientes ocupam por duas a três semanas o leito de UTI, impedindo novas internações. A quantidade de leitos livres no sistema hospitalar é muito pequena pois a maioria dos leitos é ocupada por pacientes com outras doenças. Aí vem a outra prioridade: aumentar leitos de UTI. Na China foram construídos dois hospitais - por volta de 5 mil leitos foram adicionados. Uma conta superficial, que precisa ser refeita por especialistas, sugere que o Estado de São Paulo provavelmente necessitaria de 4 mil leitos além dos que existem. Claro que isso é impossível de organizar em duas ou três semanas, afinal não somos a China, mas se preparar significa aumentar os leitos e decidir sua alocação.

Além dessas providências, os países criaram protocolos para cuidar de pacientes, sistemas para monitorar pessoas em quarentena, credenciamentos de médicos e enfermeiras aposentados, e um sistema sofisticado de informação ao público. Depois de tudo isso, países como Inglaterra e Alemanha avaliam que estão parcialmente preparados para enfrentar o número de casos que seus epidemiologistas acreditam que virão a ocorrer. 

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Que eu saiba no Brasil nem sequer decidimos possíveis cenários que podemos enfrentar. Serão 10 mil casos, 100 mil ou 1 milhão em 2020? Estamos esperando para ver. Estamos brincando com fogo e provavelmente vamos nos queimar.

É BIÓLOGO

Opinião por Fernando Reinach
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