China e Rússia estão à frente na disputa pela vacina da covid fugindo de regras já consagradas

Dois países começaram a introduzir vacina em massa antes da conclusão de todos os testes; corrida para desenvolver imunizante virou desafio geopolítico

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Por Eva Dou e Isabelle Khurshudyan
Atualização:

SEUL – China e Rússia começaram a introduzir em massa suas vacinas contra o novo coronavírus antes de todos os testes clínicos estarem concluídos, o que vem se tornando um desafio geopolítico inesperadamente complexo para os Estados Unidos.

Primeira vacina contra a covid-19 foi regulamentada pela Rússia em agosto Foto: Dado Ruvic/Reuters

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O laboratório chinês Sinopharm anunciou esta semana que vai oferecer doses de emergência de uma das suas duas vacinas sendo testadas para os Emirados Árabes Unidos, priorizando o aliado dos Estados Unidos em relação a vasta maioria de chineses. A China agora é a única fornecedora da vacina para o Oriente Médio.

Por outro lado, nesta semana, o fundo soberano da Rússia fechou contrato para o fornecimento de 100 milhões de doses da vacina Sputnik V para a Índia.

Esses avanços têm deixado as autoridades políticas ocidentais desconcertadas. Especialistas da área da saúde afirmam que os Estados Unidos não devem se apressar para lançar sua própria vacina, em resposta. Mas o fato é que agora China e Rússia são os únicos países fazendo uso desse instrumento diplomático valioso durante os próximos meses.

O resultado é que, no próximo ano, os dois países podem ter acumulado um significativo poder geopolítico se evadindo das regras existentes e lançando suas próprias vacinas. É possível também que suas vacinas falhem, com um enorme custo humano.

“É realmente insano e uma ideia terrível”, afirmou Arthur Caplan, chefe da divisão de ética médica na Grossman School of Medicine da universidade de Nova York, referindo-se ao fato de China e Rússia não aguardarem os resultados da fase 3 dos testes. “É extremamente difícil de entender”.

Kirill Dmitriev, diretor do Russian Direct Investment Fund, que bancou os esforços para produzir a vacina russa, disse que a decisão de lançar a Sputnik V antes da conclusão da fase 3 foi aprovada por outros países que agora vêm agindo da mesma maneira.

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“A crítica é de que não se pode registrar uma vacina antes da fase 3. Mas a China registrou uma vacina e os Emirados Árabes registraram uma vacina, antes de completada a terceira fase. E Estados Unidos e Grã-Bretanha declararam publicamente que estão pensando em registrar uma vacina antes da Fase 3. Portanto esta parte da crítica está encerrada”.

Nos últimos dias, o presidente Donald Trump tem feito pressão no sentido de se lançar uma vacina americana mais rápido, apesar de os laboratórios americanos serem contrários à ideia de contornar os protocolos de segurança estabelecidos.

Centenas de milhares de pessoas na China, incluindo diplomatas, militares, trabalhadores da área da saúde e funcionários de estatais, receberam a vacina da Sinopharm segundo notícias na mídia oficial chinesa. Mas mesmo com o resto do país aguardando para ser vacinado, Pequim já vem enviando a vacina para regiões do exterior onde pretende expandir sua influência.

Além da colaboração com os Emirados Árabes, a Sinopharm também vem realizando a fase 3 de testes na Jordânia e no Bahrein.

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O Egito anunciou em 11 de setembro que iniciará testes com uma vacina, três dias depois de o laboratório britânico-sueco AstraZeneca interromper os testes clínicos devido “a uma enfermidade potencialmente inexplicável”. Os testes depois foram retomados, mas não nos Estados Unidos. O Egito firmou um contrato com a AstraZeneca em julho para compra de 30 milhões de doses da vacina.

Em Moscou, as autoridades afirmaram esta semana que doses iniciais da Sputnik V foram fornecidas para todas as regiões da Rússia e os primeiros a receberem a vacina são os trabalhadores da área médica e professores. Índia, Brasil, México e Cazaquistão também fecharam contratos de compra da Sputnik V.

No caso da China, a aposta é enorme. Sendo o país de origem do novo coronavírus, a China procurou reparar o dano e refrear a fúria internacional. Mas alguns dos esforços que empreendeu anteriormente falharam, como ocorreu quando toneladas de máscaras e outros equipamentos de proteção pessoal exportados da China apresentaram defeitos.

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No caso da vacina, as apostas são ainda mais altas. Médicos afirmam que o risco de raros, mas severos, efeitos colaterais, não se verificou em testes realizados em menor escala, por isto os testes em larga escala da fase 3 são realizados normalmente durante meses antes de uma vacina ser aprovada para venda. Problemas de segurança também podem surgir por causa da produção apressada.

Mas se ficar provado que a vacina chinesa é segura e eficaz, isto vai consolidar seu avanço sobre o ocidente no campo da recuperação econômica em 2021, ao mesmo tempo que o país usará a vacina como um poderoso recurso diplomático.

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Mesmo que China e Rússia sejam os primeiros a comercializar a vacina, não haverá doses suficientes para todos, o que requerer um decisão quanto a quem terá prioridade. Os dois países calculam que conseguirão produzir um volume suficiente de vacinas no primeiro ano para uma fração da sua população.

Na semana passada, Zhou Song, executivo da Sinopharm, declarou numa entrevista de rádio que a empresa espera produzir inicialmente 300 milhões de doses em um ano. Com duas doses por pessoa, como será necessário, essa quantidade cobrirá um décimo da população chinesa. As vacinas estarão disponíveis em dezembro, disse ele.

A China tem quatro candidatas à vacina contra a covid-19 cujos testes estão na fase 3, e os laboratórios responsáveis vêm realizando testes em todo o mundo, com seus executivos explicando que a China tem tão poucos casos de covid-19 que é difícil levar a cabo os testes no país.

Mas esses testes também são diplomaticamente convenientes para Pequim, uma vez que basicamente significam um acesso antecipado à vacina que a China oferecerá para nações em desenvolvimento. Entre os países que iniciaram testes da fase 3 da vacina chinesa estão Argentina, Bahrein, Brasil, Bangladesh, Egito, Indonésia, Jordânia, Marrocos, Peru, Rússia, Arábia Saudita, e Emirados Árabes Unidos.

Quanto à Rússia, o Russian Direct Investment Fund informou que 30 milhões de doses serão produzidas até o fim do ano, o suficiente para vacinar cerca de 20% da população. Mas embora as doses produzidas domesticamente estejam reservadas para os russos, o fundo planeja fabricar quantidades maiores da vacina para serem vendidas no exterior.

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O ministro da Saúde da Rússia, Michail Murashko, disse à agência de notícias Tass esta semana que, dos 40 mil voluntários para os testes da Fase 3, mais de 300 foram vacinados até agora, número que não inclui os trabalhadores da área da saúde ou professores. O ministro acrescentou que a vacina estará disponível para a população em geral em novembro ou dezembro.

O presidente Vladimir Putin afirmou que sua filha tomou a vacina. Na China, Zhou, da Sinopharm, declarou, sem oferecer dados corroborando sua afirmação, que das centenas de milhares de doses da vacina que foram administradas, não ocorreu “um único caso de reação adversa clara ou de infecção”.

Em conversa com a mídia estatal na semana passada, Zhou admitiu que existem temores quanto à segurança da vacina, que não é indicada para mulheres grávidas ou que estão amamentando, disse ele, devido à falta de pesquisa nesse campo.

Escândalos envolvendo a segurança de vacinas são comuns na China. Pesquisas têm mostrado um alto índice de ceticismo por parte da população, e segundo um levantamento feito em 2019,70% das pessoas indagadas disseram não confiar numa vacina.

Na Rússia, numa pesquisa feita em agosto, 54% das mais de 1.600 pessoas entrevistadas responderam que não pretendiam se vacinar como voluntárias, de acordo com o Levada Center, órgão independente.

Semyon Galperin, diretor do grupo de defesa Doctor’s Defense League, disse que alguns médicos temem ser pressionados a se vacinarem. O site de notícias médicas Medvestnik informou esta semana que o ministério da Saúde apresentou proposta de reter bonificações prometidas aos profissionais da área médica que trataram pacientes do coronavírus se eles se recusarem a tomar a vacina.

Leigh Turner, professor do Centro de Bioética da Universidade de Minnesota, disse que colocação apressada da vacina para a população e os planos de impor a vacina para os trabalhadores da saúde levantam dúvidas quanto ao consentimento informado dos primeiros receptores.

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“Quanto vemos notícias, por exemplo, de que membros do Exército estão sendo vacinados, fico em dúvida quanto a se esses indivíduos realmente poderiam se recusar a ser vacinados”, disse ele./Tradução de Terezinha Martino

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