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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Colorido celestial

'Redescobrimos o azul correto, o azul azul', diz Drummond em crônica sobre a chegada do outono

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Atualização:

‘Não basta sentir a chegada dos dias lindos. É necessário proclamar: ‘Os dias ficaram lindos’”, começa a crônica sobre a chegada do outono escrita por Carlos Drummond de Andrade. “Redescobrimos o azul correto, o azul azul, que há meses se despedaçara em manchas cinzentas no branco sujo do espaço”, prossegue ele.

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Quem sou eu para desobedecer ao poeta? Aqui vai meu aviso, portanto: os dias ficaram lindos. Talvez não seja novidade para você. Desde a eclosão da pandemia, sobretudo naquele angustiante começo em que muitos se viram trancafiados em maior ou menor grau, redescobrimos a natureza. A adoção de animais de estimação disparou. A jardinagem cresceu. E as fotos do céu se multiplicaram pelas redes sociais. Auroras. Ocasos. Luas cheias. Cúmulos. Cirros. Os olhares se elevaram e talvez agora mais gente note a mudança de matiz no firmamento outonal.

Até onde consegui compreender, a coloração mais intensa e profunda tem a ver com a menor umidade do ar, que mais seco fica livre de barreiras para a luz. E também com a posição do sol: o céu é azul por causa da interação entre as ondas eletromagnéticas da luz e a composição química da atmosfera terrestre; no outono, com o sol mais inclinado, os seus raios atravessam uma camada mais espessa da atmosfera para chegar até nós, aumentando essa interação e tornando o azul azul, como disse Drummond.

Desde a eclosão da pandemiaredescobrimos a natureza Foto: Unsplash/Davi Rezende

É uma época em que costumamos ver também cores mais bonitas no pôr do sol – o tradicional dourado aparece misturado com laivos de alaranjado, magenta, caminhando para o violáceo antes de desembocar no azul-escuro da noite. Uma das causas para essa beleza é o acúmulo de poluentes modificando a composição química da atmosfera, que também ocorre nessa estação com a redução da umidade.

É curioso: a poluição vem sendo associada a maior risco de depressão em diversos estudos recentes – quanto maior a concentração de poluentes, maior o risco. Por outro lado, a contemplação da beleza se mostra uma estratégia eficaz para combater sintomas depressivos em outras pesquisas. 

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Ou seja, o mesmo material particulado que nos agride a ponto de nos deprimir cria cores belas que podem nos alegrar. Como bem pensou Drummond, a “consequência da combinação de azul e leveza de ar é o sossego que baixa sobre nosso estoque de problemas. Eles não deixam de existir. Mas fica mais fácil carregá-los”.

Não que eu vá defender aqui a poluição, evidentemente. É preciso combatê-la. Mas é sempre bom lembrar que pode haver beleza mesmo em meio aos problemas contra os quais lutamos, e contemplá-la eleva o moral para seguir na batalha.

* É PROFESSOR COLABORADOR DO DEPARTAMENTO DE PSIQUIATRIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP 

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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