Com escassez de vacinas, número de pessoas com 2ª dose atrasada triplica e chega a 5 milhões

Um mês atrás, Ministério da Saúde havia informado que 1,5 milhão de brasileiros estavam com a segunda aplicação em atraso; problema foi agravado por desabastecimento da Coronavac

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Por Fabiana Cambricoli
Atualização:

SÃO PAULO - Em meio à falta de vacinas contra a covid-19, o número de brasileiros que estão com a segunda dose do imunizante atrasada triplicou em um mês e já chega a 5 milhões, segundo levantamento feito pelo Estadão na base de dados de vacinados do Ministério da Saúde, disponível no site Open Datasus.

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No dia 13 de abril, o órgão federal informou que cerca de 1,5 milhão de pessoas não haviam retornado no prazo para tomar a dose de reforço. Na segunda quinzena do mesmo mês, centenas de cidades tiveram que interromper a aplicação da Coronavac por causa do atraso na entrega de novos lotes do produto. Essa é uma das principais razões apontadas por gestores locais para o aumento expressivo do número de pessoas com esquema vacinal incompleto.

Os dados levantados pelo Estadão, porém, incluem qualquer caso de segunda dose fora do prazo: tanto pessoas prejudicadas pela falta do imunizante quanto aquelas que não retornaram ao posto por razões pessoais (esquecimento, desistência etc).

Segundo análise da reportagem, são 4.519.973 pessoas com a segunda dose da Coronavac atrasada e outras 532.737 com o imunizante da AstraZeneca/Oxford fora do prazo. A primeira tem intervalo máximo recomendado de 28 dias entre as duas doses. No caso da segunda, o período recomendado é de 12 semanas, mas a maioria das unidades de saúde tem arredondado e agendado a segunda aplicação para depois de 3 meses/90 dias - prazo considerado na análise.

O Sudeste é a região com o maior número de pessoas com a segunda dose atrasada, com 49,5% dos casos. Em seguida, aparece o Nordeste e Sul, com 24,1% e 15,3% do total de indivíduos com o imunizante fora do prazo, respectivamente. Centro-Oeste (5,9%) e Norte (5%) completam a lista.

O levantamento do Estadão leva em conta os dados preenchidos até 14 de maio, mas considerou para o cálculo de doses atrasadas apenas aqueles registros de pessoas que deveriam ter recebido a injeção até o dia 8 de maio. Isso porque o tempo médio entre a aplicação e a notificação no sistema federal é de seis dias. A reportagem excluiu da análise ainda os registros em que um mesmo paciente aparece com três doses ou mais, o que pode caracterizar falha no preenchimento ou fraude.

Campanha de vacinação contra a covid-19 Foto: Marcelo Chello/Estadão

Como alguns Estados têm maiores dificuldades para informatizar os registros, é possível que algumas das pessoas que aparecem com a segunda dose atrasada já tenham finalizado o esquema vacinal, mas ainda não tenham sido registradas no sistema. A análise, no entanto, mostra um número expressivo de pessoas com a segunda dose atrasada há semanas, o que mostra que o alto número de pessoas sem dose de reforço não é reflexo somente do atraso no preenchimento dos dados.

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Entre os 4,5 milhões que estão com a segunda dose da Coronavac atrasada, por exemplo, 1,7 milhão já espera a segunda aplicação há mais de 20 dias além do prazo máximo previsto em bula. Destes, há 379,2 mil pessoas que estão com a dose de reforço atrasada há mais de dois meses.

Embora o Ministério da Saúde e especialistas afirmem que um atraso de poucos dias entre as doses não deva comprometer a eficácia do imunizante, não há estudos ainda que confirmem qual seria o atraso máximo tolerado e se pessoas que demoram meses para receber a segunda aplicação deverão reiniciar o esquema vacinal.

A vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Isabella Ballalai, diz que, além do risco de queda na eficácia e de “perda” de uma dose no caso de necessidade de reiniciar a vacinação, o atraso da segunda dose também preocupa porque deixa a população que já tem direito ao imunizante desprotegida por mais tempo. “A vacina só vai atingir a eficácia desejada após a segunda dose. Enquanto isso, a pessoa fica por mais tempo suscetível à infecção”, diz. 

A especialista diz que isso é especialmente preocupante no caso da Coronavac, que tem uma eficácia menor com apenas uma dose. Os estudos clínicos demonstraram que a taxa de proteção 28 dias após a primeira aplicação é menor que 50%, mas chega a 62,3% duas semanas após a aplicação da segunda dose se o intervalo entre as duas injeções for de 21 a 28 dias.

Já a vacina de Oxford/AstraZeneca confere proteção de 76% depois de 22 dias da primeira dose. O nível de anticorpos, no entanto, começa a cair após 90 dias, por isso a recomendação pela dose de reforço depois de 3 meses.

Orientação federal de não reservar 2ª dose atrapalhou, diz representante dos municípios

O presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM), Glademir Aroldi, afirma que o principal motivo do alto número de segundas doses em atraso é a falta de imunizantes. “Em março veio uma orientação do Ministério da Saúde para que as Prefeituras usassem todas as doses enviadas para a aplicação de D1 e não reservassem mais as D2 daqueles que já tinham tomado. Isso prejudicou muito”, diz ele.

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De fato, o ministério orientou, na ocasião, os gestores municipais a utilizarem todas as doses disponíveis para acelerar a campanha, sem considerar que o cronograma de entrega da Coronavac poderia sofrer atrasos, impactando a oferta de vacinas para a conclusão do esquema vacinal.

Na segunda quinzena de abril, foi justamente isso que aconteceu. Prejudicado pela demora no envio do ingrediente farmacêutico ativo (IFA) da China, o Instituto Butantan, produtor da Coronavac no Brasil, não entregou cerca de 4 milhões de doses esperadas para o mês passado. A entrega foi feita na primeira quinzena de maio, mas, segundo a CNM, não foi suficiente para atender todos que esperavam pela segunda dose.

Pesquisa feita pela confederação com dados de 2.972 municípios e divulgada na última quinta-feira, 13, mostra que ao menos 1.140 cidades relataram ainda sofrer falta de vacina para a aplicação da segunda dose. A grande maioria (1.140) relata escassez da Coronavac, mas há também 90 prefeituras que responderam estar desabastecidas do imunizante de Oxford/AstraZeneca.

Aroldi diz ainda que a falta de uma campanha de comunicação liderada pelo ministério tem dificultado a orientação da população sobre as datas e a importância da segunda dose. “Cada cidade está fazendo de um jeito. Algumas agendam, outras só informam a data em um cartãozinho. Tem gente que perde o cartão e não volta ao posto”, diz.

Ele cita até casos de pessoas que não voltam à unidade de saúde para a segunda dose com medo de efeitos colaterais da vacina, principalmente depois de relatos de que o imunizante da Oxford/AstraZeneca pode causar coágulos. O evento adverso, no entanto, é raríssimo e não levou à contraindicação do produto. O uso da vacina só está suspenso para gestantes e puérperas.

Por todo o País, multiplicam-se os relatos de pessoas, sobretudo idosos, com a segunda dose atrasada. A servidora pública Lilian Rigo, de 42 anos, conta que a mãe, de 67 anos, espera desde o dia 6 de maio pela segunda dose na cidade de Dores do Rio Preto, no interior do Espírito Santo. “Minha tia morreu há 15 dias de covid e fico com medo pela minha mãe. Fico muito ansiosa de saber que ela poderia já estar protegida e não está por uma desorganização do governo”, diz.

A universitária Letícia Emanuelly, de 19 anos, conta que o avô, de 66 anos, esperou ainda mais tempo. Morador do interior do Rio Grande do Sul, ele deveria ter recebido a segunda dose da Coronavac no dia 28 de abril, mas não encontrou a dose nos postos da sua cidade. O idoso foi finalmente vacinado nesta segunda-feira, 19 dias depois do prazo previsto.

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Ele trabalha como vendedor autônomo e tem enfrentado dificuldades para pagar as contas depois de tanto tempo de isolamento. “Ele se frustrou muito com esse tempo todo parado, e até agora esperando a segunda dose pra poder voltar a trabalhar”, conta Letícia.

O Ministério da Saúde orienta todos que estão com a dose atrasada a tomarem o imunizante assim que ele estiver disponível, mesmo que em atraso. Questionado sobre o aumento de pessoas com esquema vacinal incompleto, a ministério afirmou apenas que a orientação é que Estados e municípios “sigam à risca o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19 (PNO)”, incluindo os informes técnicos que acompanham cada lote e definem os públicos a serem imunizados.

O órgão disse ainda que enviou aos Estados, na semana retrasada, 4,8 milhões de doses de vacinas para atender exclusivamente a segunda etapa de vacinação. Na semana passada, disse o ministério, foram enviadas mais 3,6 milhões de doses para completar o ciclo vacinal. 

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