Com mobilidade reduzida, ele continua com o trabalho voluntário

Jamerson Mancio, que atua em mobilizações sociais e antirracistas, quer mostrar que sua condição não é uma barreira intransponível

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

A vida de Jamerson Mancio pode ser dividida em antes e depois do acidente de trânsito que o levou a perder de 80% a 90% dos movimentos da perna esquerda.

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Ao longo da vida, ele também teve de lidar com duas realidades. Filho de pais separados, de um pai negro e uma mãe branca, conta que experimentou “duas leituras sociais, duas organizações efetivas e econômicas diferentes”. Levou tempo para organizar tudo isso internamente.

Já adulto, Mancio conheceu o reggae e o ativismo. Decidiu cursar Pedagogia e começou a atuar no Guerreiros Sem Armas. Mesmo após o acidente e uma longa recuperação, ele segue com o programa educacional de formação internacional de lideranças jovens criado pelo Instituto Elos.

Jamerson Mancio conta que sente dores, mas que busca se superar para seguir ajudando quem precisa Foto: Otávio Almeida e Paulo Pereira

Em setembro de 2017, o ativista social Jamerson Mancio sofreu um acidente de trânsito. Uma motorista distraída acelerou o carro e acertou em cheio a traseira da moto em que ele estava. Com a queda, Mancio sofreu uma fratura gravíssima no tornozelo e na fíbula da perna esquerda. “Achei que iria perder o pé. Ele ficou pendurado apenas pelos ligamentos e tendões”, disse. Durante aproximadamente um ano foram nove internações e 11 cirurgias. A vida dele pode (e deve) ser dividida entre antes e depois do acidente.

Antes do acidente, quando ainda era uma criança, ele via sua vida familiar dividida em duas realidades. Filho de pais separados, de um pai negro e uma mãe branca, vivenciou “duas leituras sociais, duas organizações efetivas e econômicas diferentes”, como ele mesmo diz.

Contrastes e dificuldades

Em Juiz de Fora, Minas Gerais, morou nos bairros Mundo Novo (com a mãe) e em Santa Luzia (com o pai). “Vivi nesta transição entre dois bairros. Brincava no morro (bairro do pai), estudei em colégios particulares (bairro da mãe). Eram bairros próximos. Então tinha rixa de turmas e esse tipo de coisa. Eu transitava entre os dois lados”, lembrou.

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Na adolescência, Mancio era conhecido por andar de patins pela cidade, inclusive por patinar se segurando na traseira de ônibus. A vida escolar não foi fácil. Ele foi expulso de três escolas. “Eu era rebelde, inquieto. Nas escolas particulares, não tinha aceitação porque a maioria dos alunos era branca. Quando fui para a escola pública, também não tinha aceitação porque não tinha amizades.”

“Em uma das escolas, minha mãe chegou a pedir clemência para que eu não fosse expulso. Lembro que o diretor disse que eu apenas seria o primeiro de uma fila de outros expulsos”, contou. “Mas não foi nada disso. Nenhum aluno branco foi mandado para fora do colégio. A questão racial sempre esteve presente na minha vida, na escola ou mesmo nos lugares que eu frequentava. O que eu não sabia, na época, era explicar para minha mãe o que acontecia.”

No início da vida adulta, as coisas começaram a se organizar melhor na cabeça de Mancio quando ele encontrou paz e significado na capoeira e, principalmente, no reggae. “Me entreguei de coração para a música. Aprendi a tocar violão.” Embalado pelo som e mensagem de artistas como Bob Marley e Peter Tosh, viu o chamado pela luta social e o ativismo aflorarem em sua vida.

Mancio teve banda, tocou em festivais e para públicos que, às vezes, estavam mais interessados na bebida do que na mensagem do reggae. Por um tempo, tentou carreira solo e fazia questão de passar mensagens de paz e união em suas músicas. Inquieto, tentou a faculdade de música. Não entrou, mas seguiu seu coração investindo em outro sonho.

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Com um desejo de ser um professor-ativista (construir escolas na Amazônia, levar educação para comunidades distantes), foi cursar Pedagogia na Universidade Federal de Juiz de Fora e começou a atuar no Guerreiros Sem Armas, um programa educacional de formação internacional de lideranças jovens criado pelo Instituto Elos. No Guerreiros, atuou em diversas frentes – principalmente em educação de crianças.

Desafio depois do acidente

E foi aqui, no auge do seu trabalho social, que o acidente de moto transformou sua vida. “Segundo os médicos, a amputação era mais provável”, lembrou. Ele, de fato, perdeu de 80% a 90% dos movimentos da perna esquerda. A situação só não foi pior porque uma vaquinha virtual garantiu os melhores hospitais e tratamentos disponíveis na região.

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“No acidente, eu me mantive calmo. Pensei que ‘o rolê já estava dado’. Pelo celular, liguei para o resgate e fui explicando minha localização. Mesmo durante a recuperação, que foi dura e longa, tive muita paciência e contei com uma rede de amigos e profissionais que seguraram minha barra e me ajudaram demais. Mesmo nos meus piores dias”, falou.

“Com os Guerreiros Sem Armas, ajudo muito na formação de pessoas como eu. Tento mostrar a importância daquilo que eu chamo de caminho do ‘sim’. É um olhar de cuidado com quem está começando no caminho do ativismo.”

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Em 2020, mesmo com mobilidade reduzida, Mancio voltou para as atividades dos Guerreiros Sem Armas e do Instituto Elos. “Eu tenho feito tudo de um jeito diferente. Dói? Dói! Toda hora. Mas tenho ultrapassado os meus limites”, disse. “Entendo meu lugar de representatividade. Atuo em pautas antirracistas e sobre vulnerabilidade social. Agora também quero mostrar que pessoas com mobilidade reduzida podem participar de voluntariado e mobilizações sociais”, falou.

Hoje, aos 40 anos, Mancio, mora na Praia de Maracaípe, em Pernambuco (perto de Porto de Galinhas). Lá, continua seu trabalho com o Instituto Elos e iniciou uma parceria com a ONG TPM (Todas Para O Mar), uma organização feminista e antirracista.

“Meu projeto com elas é o de construir uma sede e, principalmente, incentivar a prática de esportes, como o surfe, por pessoas com mobilidade reduzida e deficiências”, contou. “Sinto que é muito importante mostrar, com o meu exemplo, que a mobilidade reduzida não é uma barreira intransponível para quem quer realizar sonhos e lutar por eles”, concluiu.

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