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Como a ausência de um gene levou cientistas sul-africanos a descobrir a Ômicron

Anomalias que fizeram cientistas descobrir variante Ômicron do coronavírus foram detectadas por laboratório da África do Sul. País afirma que tem sido penalizado globalmente

Por Antony Sguazzin
Atualização:

No início de novembro, laboratórios na província de Gauteng, na África do Sul, começaram a detectar algo incomum durante o processamento dos testes de covid-19: os cientistas não conseguiam detectar o gene do vírus que cria a proteína spike, a qual permite que o patógeno entre nas células humanas e se espalhe.

Na mesma época, os profissionais de saúde da região observaram uma inundação repentina de pacientes com fadiga e dores de cabeça. Os novos casos apareceram após as semanas de calmaria que se seguiram a uma terceira onda de coronavírus, impulsionada pela variante Delta, que atingiu Joanesburgo e a capital, Pretória, em julho.

Alunos usando máscaras para entrar nas salas deaula, em Joanesburgo, na África do Sul, no dia 30 de novembro de 2021. Foto: Jerome Delay/AP

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Os desdobramentos apontavam para o início de uma onda de infecções pela variante Ômicron no país. Esta rapidamente se tornou a cepa dominante e gerou um novo aumento de casos. O anúncio de sua descoberta, em 25 de novembro, gerou pânico global e um colapso dos mercados, com países como o Reino Unido e os Estados Unidos proibindo voos de ida e volta para a África do Sul. Na terça-feira, a mutação já havia sido encontrada em pelo menos 15 países.

As anomalias nas amostras foram detectadas pela primeira vez por cientistas do Lancet Laboratories, que disparou o alarme, de acordo com Glenda Gray, presidente do Conselho de Pesquisa Médica da África do Sul. “Eles não sabiam o que havia de errado, então alertaram os virologistas, que começaram a sequenciar as amostras”, disse ela em entrevista no dia 29 de novembro.

A cientista Alicia Vermeulen recebeu os créditos pela descoberta, ocorrida na tarde de 4 de novembro, quando ela notou uma anomalia em um único teste positivo e levou o caso a seu supervisor, de acordo com o News24, um site de notícias sul-africano. Na semana seguinte, a mesma anomalia foi detectada várias vezes, e então a informação chegou a Allison Glass, chefe de patologia molecular do Lancet e membro do Conselho Consultivo Ministerial do governo para covid-19, disse o site.

Junto com o Instituto Nacional de Doenças Transmissíveis, antes de 22 de novembro o Lancet conseguiu determinar a existência de uma nova variante, inicialmente conhecida como B.1.1.529, informou o News24. O gene S não pôde ser detectado porque havia sofrido mutação.

Enquanto isso, cientistas de Botswana também detectaram as mesmas anomalias em amostras de testes realizados em viajantes no início de novembro, e a peculiaridade também apareceu em uma amostra retirada de uma pessoa que voltara da África do Sul para Hong Kong e estava em quarentena.

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Os dados foram carregados no GISAID, um repositório global, e vazaram rapidamente. Em 24 de novembro apareceram os primeiros relatos sobre a nova variante na mídia britânica.

Nicholas Crisp, o diretor-geral interino do Departamento de Saúde da África do Sul, disse que fora informado pela primeira vez na noite de 24 de novembro. Outros funcionários importantes do governo receberam a informação no dia seguinte e então se convocou às pressas a entrevista coletiva na qual Túlio de Oliveira, chefe de dois institutos de sequenciamento de genes na África do Sul, anunciou a descoberta.

Por enquanto, dizem os médicos, a Ômicron parece causar sintomas leves. Mas, com o surto decolando em um grupo relativamente jovem de estudantes universitários, é difícil dizer qual pode ser o efeito da variante quando ela se estabelecer em segmentos mais velhos e vulneráveis da população. “O que quer que eu diga a você hoje pode ser falso amanhã”, disse Gray.

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A Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou sobre o potencial de surtos de covid com “consequências graves” impulsionados pela Ômicron, cuja constelação de mutações sugere que ela pode ser mais transmissível e capaz de escapar da imunidade fornecida pela vacinação ou por infecções anteriores.

A velocidade da descoberta é prova das capacidades de sequenciamento de genes da África do Sul, que foram construídas com a ajuda de dinheiro para pesquisa investido no combate a outras doenças. O país tem o maior número de infectados por HIV do mundo e uma das maiores epidemias de tuberculose. “A África do Sul tem alguns dos melhores virologistas e sequenciadores de genes do planeta. Temos isso por causa do HIV e da tuberculose”, disse Gray. “Todas essas pessoas fizeram a transição para a covid-19”.

Os acontecimentos que se seguiram à descoberta da Ômicron desanimaram o governo sul-africano e grupos empresariais. Proibições de voos foram rapidamente impostas no momento em que começa a crucial temporada de férias de verão no país, o que ameaça atrapalhar os esforços para a retomada de uma economia que em 2020 sofreu sua maior contração em pelo menos 27 anos.

“Temos que questionar o sentido de criar o pânico que o anúncio sem dúvida criou”, disse a Câmara de Comércio e Indústria da África do Sul, o maior grupo empresarial do país.

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Embora a OMS tenha dito que a comunidade internacional deveria agradecer a rapidez com que África do Sul e Botswana fizeram o anúncio, a resposta, em vez disso, pareceu uma punição. “Nossos cientistas fizeram o que deveriam fazer, fizeram o que são eticamente obrigados a fazer”, disse Angelique Coetzee, presidente da Associação Médica Sul-Africana. “Agora somos os vilões da comunidade global de viagens”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU.

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