Como lidar com o luto infantil

Quando a criança perde alguém querido, é preciso responder as dúvidas com paciência e clareza, de uma forma que ela possa compreender sem sentir medo

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Por Katia Arima
Atualização:

Se encarar a morte de uma pessoa querida não é fácil para ninguém, para as crianças o desafio é maior porque elas ainda não entendem o que de fato isso significa. “A compreensão que a criança tem sobre a morte ainda está em construção”, explica a psicóloga Luciana Mazorra, cofundadora do Quatro Estações Instituto de Psicologia, especializado no atendimento a pessoas enlutadas. “Apesar disso, ela tem recursos de enfrentamento e é capaz de elaborar o luto de forma saudável quando tem o suporte de sua família e demais cuidadores.”

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Por isso, é importante conhecer as particularidades do luto infantil, de forma a permitir que ela encontre o seu caminho para lidar com seu sofrimento. Para a criança pequena, inicialmente, a morte é vista como um fenômeno temporário e reversível, explica a psicóloga Luciana. “Ela acredita ser possível recuperar a pessoa perdida”, diz. Quando a criança não recebe a explicação de que quem morre não volta a viver, de que seu corpo para de funcionar e que não necessita mais de ar e alimento, ela pode ficar angustiada ao achar que o falecido está sofrendo embaixo da terra, sem respirar, ou sentindo frio e fome, por exemplo. Ainda em fase egocêntrica, ela tende a achar que seus pensamentos e ações podem ser capazes de provocar a morte – o que pode trazer a culpa. Por isso, é fundamental explicar que ela não foi responsável pela morte.

Segundo a psicóloga Luciana Mazorra, por volta dos 6 anos a criança passa a compreender que quando alguém morre o seu corpo para de funcionar e que a morte tem uma causa concreta que não se refere a ela. “Também começa a compreender que todos vão morrer um dia, inclusive ela mesma”, diz.

Bernardo, de 6 anos, com os pais e a irmãzinha: entre as estratégias para lidar com o luto do menino com a perda das irmãs, a mãe criou 'ursinhos da memória' Foto: Taba Benedicto/Estadão

Essa consciência da finitude exige a intervenção de um adulto. “É preciso dizer à criança que ela e outras pessoas não vão morrer agora – mesmo que a gente saiba que isso não seja garantido”, orienta Maria Julia Kovács, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte (Leme/IPUSP). Segundo ela, é essencial que o adulto permita que ela expresse a sua dor, tire as suas dúvidas de forma simples, direta e clara.

“A melhor forma de ajudar a criança é estar disponível e ouvi-la com atenção, acolhendo e legitimando o seu sentimento. Não é hora de dar conselhos ou exigir que a criança seja forte”, diz a professora.

A melhor forma de ajudar a criança é estar disponível e ouvi-la com atenção, acolhendo e legitimando o seu sentimento. Não é hora de dar conselhos ou exigir que a criança seja forte

Maria Julia Kovács, professora do Instituto de Psicologia da USP

Elementos lúdicos 

Bernardo Villar, hoje com 6 anos, teve liberdade de chorar à vontade pela morte de suas irmãs gêmeas Alicia e Olivia, em dezembro de 2018 e janeiro de 2019, respectivamente. “Hoje ele não está mais com coração tão pesado”, percebe a mãe dele, Stefanie Hamer Villar, de 34 anos, que perdeu as filhas quando elas tinham poucos dias de vida. “Ele sofreu bastante, pois queria muito ter um irmão, e demorou para entender o que tinha acontecido”, conta. “Ele fazia muitas perguntas e respondíamos com clareza, quantas vezes fosse necessário.”

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Stefanie conta que Bernardo foi ao cemitério, mas não viu uma das irmãs no caixão. “Estava tudo muito conturbado e eu não sabia se era melhor ele ver ou não. Hoje acredito que seria importante, pois ficou uma lacuna na cabeça dele”, diz a mãe. Para ajudar Bernardo a lidar com o luto, Stefanie escreveu uma história sobre ele e as irmãs e fez um livrinho. Ao terminar a história, teve uma boa notícia – estava grávida da sua filha Isabela, que nasceu em setembro de 2020. “O livro vai ganhar um novo capítulo”, conta, animada.

Outro recurso lúdico adotado por ela foi produzir dois “ursinhos da memória”, feitos com os macacões que eram das gêmeas Alicia e Olivia. “Bernardo ficou emocionado ao receber os ursinhos. Abraçou os dois e quis tirar uma foto, já que lamentava não ter nenhum registro com as duas irmãs”, conta. 

Participar de rodas de conversa voltadas a pais em luto ajudou Stefanie e o seu marido Renan Villar a lidarem com a dor da perda das gêmeas – e com o sofrimento do filho. “Fomos orientados a conversar sobre como estávamos no sentindo. Acredito que foi muito importante para o Bernardo ver o que a gente estava sentindo. Nos tornamos transparentes uns com os outros”, avalia.

Acredito que foi muito importante para o Bernardo ver o que a gente estava sentindo. Nos tornamos transparentes uns com os outros

Renan Vilar, pai de Bernardo, de 6 anos

A professora da USP Maria Julia Kovács confirma a importância de não esconder das crianças as próprias emoções. “Quando o adulto tenta evitar o assunto ou o choro, por exemplo, a criança entende que ela tem que fazer o mesmo. É importante que ela perceba, pelo modelo do adulto, que pode expressar os seus sentimentos”, diz. 

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O luto dos órfãos da covid-19

Mais de 130 mil crianças brasileiras até 17 anos ficaram órfãs por causa da covid-19 entre março de 2020 e abril de 2021, segundo uma pesquisa realizada em 21 países e publicada na revista científica The Lancet. O número de crianças impactadas certamente é maior ao considerarmos morte de avós, tios e outras pessoas com fonte vínculo com crianças. Laura, de 13 anos, perdeu a mãe, Silvana, para a covid-19 em março deste ano e passou a morar com a tia materna, Miriam da Silva, de 50 anos. Os nomes são fictícios a pedido de Miriam, que não quer expor a sobrinha.

Miriam conta que a menina ficou indignada por não ter recebido a notícia da morte da mãe no dia em que havia acontecido, nem participado do enterro. “Ela fala que gostaria de ter vivido esse momento. Mas todo mundo só queria protegê-la e demorou para contar a verdade a ela”, diz a tia.

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Atenta à sobrinha, Miriam percebe que ela alterou bastante o seu comportamento após a morte da mãe, que tinha um forte vínculo com Laura. “O jeito de se vestir, a escolha do que comer, a convivência com os amigos, o rendimento na escola, tudo isso mudou radicalmente. Ela até cortou o seu longo cabelo. Ela se recusa a falar sobre o assunto e tenta esconder seus sentimentos, mas percebo uma revolta dentro dela”, observa. “Vejo tudo isso e compreendo que está muito difícil para ela aceitar essa mudança de vida tão radical e dolorosa.”

Para cuidar de si mesma e buscar orientação para apoiar a sobrinha, Miriam procurou o grupo de apoio emocional do Projeto Acolhe-Dor, que realiza encontros online gratuitos, conduzido por profissionais voluntários da saúde mental. A psicanalista Monika Borges, uma das fundadoras do projeto, lembra-se que Miriam chegou ao grupo desesperada. Mas, ao desabafar, conseguiu pouco a pouco reorganizar os seus sentimentos.

vale o chavão: não se pode cuidar do outro sem cuidar de si primeiro

Monika Borges, psicanalista do Projeto Acolhe-Dor

“Assim, espera-se que ela tenha mais e melhores recursos para poder acolher Laura, inclusive demonstrando para as crianças que ela também fica triste, chora, sente saudades sem que com isso se mostre fraca e, sim, humana”, diz Monika. “Aqui vale o chavão: não se pode cuidar do outro sem cuidar de si primeiro.”

Dicas para apoiar a criança no seu luto

Confira as recomendações dos especialistas em psicologia do luto consultados pelo Estadão.

  • Não esconda a morte de uma pessoa querida, nem minta. Quando a criança encontra no ambiente a mentira e o silêncio, fica desamparada e sem recursos para compreender o que está acontecendo.
  • Seja claro e direto ao falar da morte, para que ela não tenha a expectativa de que a pessoa vai voltar. Metáforas como “ele fez uma viagem” ou “virou uma estrelinha” podem confundir.
  • Convide-a para os rituais funerários, mas não force. Garanta que a criança esteja acompanhada de um adulto que responda às perguntas dela de forma clara e acolha e valide os seus sentimentos.
  • Permita que ela expresse os sentimentos. Evite falas como “não chore”, “não fique triste” ou “seja forte”, que podem reprimir essa manifestação importante.
  • Explique para a criança que o corpo enterrado ou cremado já não sente dor ou sofre, já que a criança pode ficar angustiada ao se preocupar com a pessoa que morreu.
  • Evite a expressão “sono eterno” para se referir à morte, já que a criança pode ficar com medo de dormir e não acordar mais.
  • Evite a pregação religiosa, já que a criança provavelmente não receberá bem o discurso de que “Deus quis levar” uma pessoa que era tão importante para ela.
  • Ajude-a a entender que, embora a morte seja inevitável, não significa que todos irão morrer agora.

Livros para ajudar no processo

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Recursos lúdicos ajudam as crianças no processo do luto. Veja algumas sugestões de obras que falam da morte, perdas e finitude da vida:

  • Vazio, de Anna Lennas, editora Moderna

Conta a história de uma menina que consegue superar sua tristeza, dando um novo sentido às suas perdas.

  • O dia em que o passarinho não cantou, de Luciana Mazorra e Valéria Tinoco, editora Zagodoni 

Apresenta a história de uma menina que perde seu bichinho de estimação, o passarinho Lico, e mostra como ela enfrenta a sua perda.

  • Vovô não vai voltar? – Trabalhando luto em crianças, por Aline Henriques Reis e Carmem Beatriz Neufeld, editora Sinopsys

Livro voltado a familiares e cuidadores de crianças de 4 a 12 anos, para ajudar a apoiar a criança no processo do luto.

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  • O livro do Adeus, de Todd Parr, da Panda Books

Com ilustrações de traços simples e coloridas, a obra é recomendada especialmente para as crianças pequenas, de menos de 6 anos.

  • Pode chorar, coração, mas fique inteiro, de Glenn Ringtved e Caetano Galindo, Companhia das Letrinhas

Indicado para crianças maiores de 6 anos, este livro traz a história de quatro crianças que se deparam com a Morte na casa da avó. Apesar da fama de assustadora, a Morte se revela uma gentil admiradora da vida. 

  • O que acontece quando alguém morre?, de Michaelene Mundy, editora Paulus

Trata-se de um guia para crianças que também ajuda os adultos a darem explicações acessíveis aos menores, com explicações simples sobre os funerais e assuntos relacionados à morte.

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