Relatos da quarentena (1): 'Não consigo esquecer a parte da minha vida que deixei em Wuhan'

Da base em Anápolis eu acompanho as notícias da cidade, converso com meus amigos que estão lá, assisto os números de pessoas infectadas crescer e tento não pensar muito no fato de que talvez só consiga voltar daqui a alguns meses

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Por Caleb Guerra
Atualização:

ANÁPOLIS - A partir desta terça-feira, 11, o Estado inicia a publicação de uma série de relatos escritos por Caleb Guerra, de 28 anos, estudante de Literatura que morava em Wuhan. Ele  está entre os 34 brasileiros repatriados da província, área mais afetada pela epidemia de coronavírus. Guerra viveu nove anos no país asiático - primeiro cursou dois anos de Sociologia, mas mudou para Letras e Literatura em Mandarim. Atualmente, antes de voltar para o Brasil, fazia mestrado em Mandarim clássico. Integrado à cultura local, Caleb contou que decidiu voltar por conta dos pais - que moram em Marília, no interior de São Paulo. Convidado pelo Estado, Guerra aceitou escrever um diário com suas impressões sobre a quarentena na Base Aérea em Anápolis, em Goiás. Leia o início do diário.

Caleb Guerra, de 28 anos, é um dos 34 brasileiros repatriadosde Wuhan e está cumprindo quarentena em Anápólis Foto: Caleb Guerra/Arquivo pessoal

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"Numa noite há mais de 2 mil anos, um filósofo taoísta chinês sonhou que havia se transformado em uma borboleta. No sonho, o sentimento de deslizar sobre as flores e de ser levado pelo vento o fez se esquecer de quem ele era. De repente, a borboleta se lembra de ter visto um homem deitado sonhando que se transformou nela. Então ela se dá conta que não sabe muito bem se ela é um homem sonhando que é uma borboleta ou uma borboleta sonhando que é um homem.

No primeiro dia de quarentena aqui em Anápolis, sentado em um quarto da base aérea militar depois de quase 40 horas desde que saí do meu apartamento para voltar ao Brasil, a minha vida na China parece novamente um sonho distante. Na verdade, morar na China sempre acentuou a percepção do distanciamento do Brasil e da vida que eu tinha aqui. Tudo lá é diferente de cá e nada de cá relembra sequer algo de lá.

Clima é de hotel na base aérea de Anápolis onde brasileiros repatriados de Wuhan cumpremquarentena Foto: Dida Sampaio/Estadão

Vivi os últimos nove anos vagando por duas dimensões diferentes, colecionando memórias de duas vidas paralelas. Ora eu acordava no Brasil sonhando com meu passado na China, ora me via lá caçando as reminiscências de uma vida que eu não tenho mais aqui. Até que a tragédia de Wuhan causou a colisão dos meus dois mundos. Entre a minha identidade brasileira e meus sonhos chineses, o fator de aproximação foi o povo de uma cidade inteira prostrado a um vírus que nem nome ainda tem.

De dentro da cidade isolada e silenciosa, ouvíamos todas as vozes do mundo falando sobre nós. As ruas anônimas, nunca antes catalogadas nos radares dos jornais internacionais, se tornaram o foco de milhões de olhares mundo à fora. Todos os meus amigos e familiares que nunca conseguiram memorizar direito os nomes das cidades por onde passei, soletravam e pronunciavam “Wuhan” com perfeição. A cidade ganhara a atenção global que nunca possuíra por algo que nunca desejou ter.

Pessoas que vivem em Wuhan, epicentro da epidemia de coronavírus, fazem fila no supermercado para comprar mantimentos. Número de pessoas que podem entrar nas lojas é limitado Foto: Chris Buckley/NYT

De repente, os personagens da versão brasileira da minha vida calculavam a soma dos corpos que tombavam sem vida nos leitos dos hospitais da cidade chinesa que eu chamo de casa. Os lugares que eu gostava de visitar regularmente foram fechados e jornalistas brasileiros sabiam antes mesmo de mim onde eu podia ou não ir. Meus irmãos chineses se tornaram ou estatísticas de morte ou casos suspeitos ou piadas na internet.

O capítulo da minha vida do qual o vírus de Wuhan é coautor ainda não tem um final escrito. Da base aérea de Anápolis eu acompanho as notícias da cidade, converso com meus amigos que ainda estão lá, assisto os números de pessoas infectadas crescer e tento não pensar muito no fato de que talvez eu só consiga voltar pra lá daqui a alguns meses.

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Nas outra vezes que voltei ao Brasil, minhas memórias na China sempre me pareceram um sonho distante, como se eu tivesse acordado aqui novamente depois de ter sonhado minhas aventuras asiáticas. Mas desta vez as notícias do vírus me relembram o dia inteiro do quão real é tudo o que eu vivi em Wuhan. Não consigo esquecer nem tirar da minha cabeça a parte da minha vida que deixei por lá. Não sei quando tudo isso vai acabar e ainda não processei toda essa história direito na minha mente, mas a China está mais viva no meu coração do que nunca."

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