Doenças diferentes sob o mesmo nome

Cada vez mais, a oncologia avança para tentar desvendar os mecanismos genéticos dos vários tumores

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Por Fábio de Oliveira
Atualização:
Getty Images 

As reuniões anuais da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, Asco em inglês, são quase como uma Assembleia-Geral das Nações Unidas, com especialistas de todos os cantos do mundo — mesmo que, em tempos de pandemia de covid-19, a deste ano tenha sido realizada online no começo de junho. Ali são expostos as promessas e os avanços contra o câncer, além de pesquisas que comprovam ou até ampliam os achados de trabalhos anteriores. “Essa Asco consolidou tendências”, diz o oncologista Paulo Hoff, que é presidente da Oncologia D’Or, da Rede D’Or São Luiz. “Há alguns anos o tema de encontro anual tem sido a personalização do tratamento. É um mote muito frequente nos estudos clínicos em andamento e onde temos visto os maiores avanços.”

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Ele prossegue: “Independentemente do tipo de tumor, os progressos apresentados envolvem a ideia de que o câncer é formado por doenças diferentes, agrupadas sob o mesmo nome. E para atingir o melhor resultado, é preciso individualizar o tratamento, não considerando necessariamente onde surgiu a doença, mas o que causou seu aparecimento”. O caminho que os cientistas estão seguindo, portanto, envolve decifrar as causas genéticas ou moleculares do problema.  

Hoff explica que há uma alteração muito característica na superfície das células tumorais em 30% das pacientes com câncer de mama: a HER2. “Existe um número enorme de tratamentos que são direcionados ao bloqueio desse receptor”, explica. “Este ano na Asco um novo tratamento tendo esse receptor como alvo foi apresentado para pacientes de câncer de intestino.” De acordo com o especialista, 5% dos indivíduos acometidos pela doença têm alteração nessa molécula. “Mas eles responderam excepcionalmente bem para uma terapia que era aparentemente para câncer de mama.”

O uso de material radioativo para o combate do câncer de próstata, o segundo tumor mais comum em homens no Brasil, também esteve entre os assuntos debatidos na reunião da Asco. O projeto Vision avaliou a aplicação do radioisótopo lutécio-177 em voluntários com câncer metastático que já haviam sido submetidos a outros tratamentos.

“É o que chamamos de teranóstico, a terapia ligada ao diagnóstico”, explica Guilherme Rossi, médico onconuclear da Rede D’Or São Luiz. Para receber essa opção terapêutica, o paciente passa por exames para verificar se na superfície da célula cancerosa existe uma proteína denominada antígeno de membrana específico da próstata, o PSMA. Por meio de um carreador, o radiofármaco é injetado no indivíduo e se liga à unidade celular doente, que recebe um bombardeio de radiação.

“O risco de morte foi reduzido em 39%”, diz o oncologista Fernando Maluf, do Hospital Israelita Albert Einstein e diretor-associado da Beneficência Portuguesa de São Paulo. A progressão do câncer diminuiu em 60%. “Quando se pensa em saúde pública, evita-se desperdício porque é algo preciso, específico e customizado”, diz Rossi.

 Com metástase e qualidade de vida

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A servidora pública aposentada Cláudia de Souza Lopes, 55 , nunca acendeu um cigarro. “O câncer de pulmão tem o estigma: você fumou, você procurou”, diz a morada de Brasília. Em 2014, a adepta das corridas de rua acabou no hospital devido a uma semiobstrução do intestino. “Tinha participado de uma corrida de 10 km 15 dias antes e não tinha sentido nada”, diz ela. Uma tomografia identificou um tumor no pulmão e outro no intestino. Submeteu-se a cirurgia para tratar o primeiro câncer e, em seguida, fez químio – o tumor intestinal se revelou benigno.

Em janeiro de 2018, foram descobertos nódulos no pulmão que não podiam ser operados. Era incurável. Uma porção pulmonar foi extirpada via cirurgia para ser analisada e verificada a presença de alguma mutação. No Brasil, nada foi encontrado. “Por indicação de um médico, mandei a amostra para um laboratório nos Estados Unidos”, diz Cláudia. “O resultado mostrou que era uma fusão (de mutações) EFGR-RAD51, não uma mutação pura. Por isso, não foi identificada aqui.” Desde agosto daquele ano, a brasiliense faz uso de um medicamento, uma terapia-alvo, que age diretamente nas mutações. Os tumores regrediram e hoje ela está estável. “Tenho sete anos de câncer e metástase desde 2018.”

Tratamentos como a terapia-alvo, além da imunoterapia, que estimula a ação das células de defesa contra os tumores, têm possibilitado um maior controle sobre a doença e mais qualidade de vida para os pacientes. Um dos estudos sobre câncer de pulmão apresentados na última reunião da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco) avaliou uma terapia-alvo, o sotorasibe, em indivíduos com tumor metastático não pequenas células, como o de Claudia. “Houve uma redução tumoral de 37%”, diz o oncologista Carlos Henrique Teixeira, do Centro Especializado em Oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. O tratamento-padrão com quimioterapia foi capaz de diminuir a massa tumoral em apenas 5% dos casos.

Os voluntários, no entanto, tinham uma mutação no gene KRAS, a G12C. “É a mutação mais frequente em câncer de pulmão”, diz o oncologista Marcelo Corassa, do A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo. Nenhuma outra droga havia conseguido inibi-lo.

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Cláudia percorreu os 240 km do Caminho Português de Santigo durante 10 dias em 2019. “Foi uma experiência fantástica e só foi possível porque o câncer está estável”, diz ela. A corredora se prepara para sua primeira meia-maratona. “A evolução da medicina nos tem proporcionado mais tempo de vida. Mas o principal é que nos tem propiciado qualidade de vida. Não queremos sobreviver, queremos viver intensamente”, conta. “E eu só consigo fazer isso por ter acesso ao melhor tratamento para o meu tipo de câncer, pois tenho plano de saúde.”

Cresce o fosso entre o público e o privado

Os avanços no tratamento do câncer, como a imunoterapia, novos remédios e equipamentos, tendem a chegar rapidamente na rede privada do que ao SUS, afirmam os especialistas. Mas esse fosso aumentou nos últimos anos. “Historicamente havia uma diferença entre o sistema público e privado que estava sendo encurtada”, diz o oncologista Paulo Hoff, também vice-presidente do Conselho Diretor do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo – Octavio Frias de Oliveira (Icesp). “Nos primeiros 10 anos deste século, houve uma aproximação. Nos últimos 10, ocorreu uma explosão de tratamentos.” Segundo Hoff, eles vêm com um custo bastante elevado. “O sistema privado tem conseguido acompanhar porque existe uma fonte pagadora externa. No sistema público, o impacto é substancial e, infelizmente, o gap que vinha se fechando começou a aumentar. Esses novos tratamentos têm sido incorporados muito lentamente no SUS.”

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No último encontro da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco), os especialistas apresentaram 15 estudos sobre biópsia líquida, contabiliza a oncologista Rachel Riechelman, diretora de Oncologia Clínica do A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo. Trata-se de um exame que analisa o DNA circulante do tumor no sangue. “Ao saber qual é o tipo de mutação desse DNA circulante, é possível direcionar o tratamento com imunoterapia ou terapia-alvo”, explica ela. É uma inovação, por exemplo, que não está disponível no SUS – também não é coberta pelos planos.

Na saúde pública, cabe à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS, a Conitec, analisar a inclusão de medicamentos, procedimentos ou equipamentos.

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“Mesmo quando a Conitec incorpora algum novo medicamento, por exemplo, ele não chega para o paciente”, diz Luciana Holtz, diretora executiva e presidente do Oncoguia, ONG que dá apoio e orientação ao paciente com câncer. É o caso dos imunoterápicos nivolumabe e pembrolizumabe, indicados para o câncer de pele metástico. Eles receberam o sinal verde da Conitec em agosto de 2020. E a incorporação pode levar até 5 anos.

O acesso a novas tecnologias contra o câncer não é um problema exclusivamente brasileiro, lembra Paulo Hoff. “É algo que ocorre também nos Estados Unidos, que são um país que nunca tiveram uma preocupação muito grande com custo de medicamento.” De acordo com o oncologista, um modelo a ser observado é do National Institute for Health and Care Excellence (Nice), no Reino Unido. “Eles olham o custo-benefício dos tratamentos e tentam usar isso como um parâmetro para incorporar ou não uma nova droga no sistema público.”

Pesquisa se une a clínica

A oncologistaMaria Braghiroli 

Formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), que abriga a primeira faculdade de Medicina do País, com mais de 200 anos, a oncologista clínica Maria Ignez Braghiroli, 39, especializada em tumores do trato gastrointestinal, integra o time da Oncologia da Rede D’Or em São Paulo. Ela é filha de pai paulista e mãe baiana, ambos médicos – ele, cirurgião, ela, patologista. “De certa forma, havia um convívio com a profissão, mas terminei fazendo algo diferente dos dois”, diz ela. Em São Paulo, fez residência em clínica médica no Hospital das Clínicas e em oncologia no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).

O câncer já foi muito cercado de estigma, nem se falava a palavra. Hoje, há pessoas que vivem com metástases controladas e qualidade de vida. Como você vê o câncer daqui a 10 anos?

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Não sei exatamente como vamos estar em 10 anos, mas certamente muito mais avançados do que estamos hoje. Olhando para a trato digestivo, se formos ver o que fizemos em relação ao câncer de pâncreas, é uma mudança muito grande. Ainda é uma doença muito difícil, muito imprevisível e cujo diagnóstico é tardio porque os sintomas são frustrados. Mas hoje temos uma perspectiva de tratamento e controle do problema e, eventualmente, até de cirurgia, muito superior a 10 anos atrás. Por outro lado, há coisas que fazíamos antes, mas com controle mais aperfeiçoado. Existem medicações indicadas para o câncer de mama há décadas, mas que hoje são feitas com uma tolerância muito melhor. Talvez a coisa mais supérflua seja o cabelo, mas para mulher é muito importante. Até nisso evoluímos com tocas que preservam o cabelo. Não podemos colocar isso na frente da chance de cura, mas também faz parte da autoestima. No câncer de cólon, sabemos que hoje conseguimos curar algumas pessoas com doença metastática, aliando quimioterapia e cirurgia.

Como é o dia a dia de diagnóstico e tratamento na oncologia da Rede D’Or?

Na oncologia, há uma relação muito próxima com diversas outras áreas da Medicina, desde o primeiro diagnóstico, que passa pela patologia. A Rede D’Or montou um serviço de patologia de ponta, tendo à frente o patologista Fernando Soares, que tende a se reestruturar e crescer de acordo com os caminhos que essa especialidade vem tomando, sobretudo em relação a inovações moleculares. Hoje tratamos os tumores baseando-se onde eles surgem, no cólon ou no pâncreas, por exemplo. Nos últimos quatro, cinco anos, temos incorporado opções terapêuticas de acordo com as alterações tumorais, não onde o câncer aparece. Eventualmente, cânceres de cólon e de pulmão podem ser tratados de forma semelhante se eles tiverem a mesma alteração. Por isso, a área molecular vem se expandindo bastante. Mas acho que ainda estamos engatinhando. Temos muito que aprender. Um dos diferenciais que temos em relação à maior parte dos serviços é ter a interação multidisciplinar.

De que maneira a pesquisa se integra à prática clínica?

Temos esse conceito do estudo clínico e da importância da evidência científica, documentando bem o que é vantagem e o que não é, o que realmente apresenta benefício e o que não.  Dessa forma, a pesquisa anda muito próxima da oncologia. Tanto aqui na Rede D’Or quanto no Icesp, onde também trabalho, essa área é muito forte. A pesquisa é bem estruturada. No Rio de Janeiro, há uma estrutura muito robusta de pesquisa básica, principalmente na área de neurologia, com publicações em revistas de renome como Science e Nature.

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