‘Pandemia pode revelar apagão de profissionais de saúde’, diz pesquisador

Professor de epidemiologia e ex-reitor da UFSB, Naomar Almeida FIlho diz que falta de leitos preocupa e alerta também para a questão de uma possível falta de profissionais de saúde no combate ao avanço da doença no País

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Por Túlio Kruse
Atualização:

SÃO PAULO - A pandemia do novo coronavírus acende um sinal de alerta no sistema de saúde em todos os países. No Brasil, preocupam a falta de leitos e também o número de profissionais que vão combater a doença. "Uma equipe capacitada para prestar cuidados intensivos, médicas, enfermeiras, técnicas, pessoal de apoio, não se forma em dias ou semanas. A pandemia pode revelar que também temos um apagão de profissionais de saúde." A opinião é do epidemiologista Naomar Almeida Filho, ex-reitor da Universidade do Sul da Bahia e atualmente pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Leia a entrevista que ele deu ao Estado.

O pesquisador Naomar de Almeida Filho, professor titular de epidemiologia da UFBA Foto: Alex Reipert/UNIFESP

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O aumento de casos nos últimos dias mostra uma tendência de alta no País. Por quanto tempo seria necessário acompanhar para dizer que há uma tendência de crescimento menor, por exemplo?

Precisamos de dados transparentes, em tempo real. É crucial defendermos a plena transparência, com acesso pleno aos dados para que pesquisadores possam a partir deles produzir informação relevante e útil. Nesse aspecto, os recentes atos do governo federal no sentido de alterar a Lei de Acesso à Informação, dificultando o acesso do público e dos cientistas aos dados da pandemia, são absurdos.

O Brasil tem uma das epidemiologias mais bem desenvolvidas do mundo. Depois de Estados Unidos e Reino Unido, estamos na mesma faixa de competência de países europeus que agora estão no epicentro da pandemia.  

O sistema de notificação usa um modelo de alimentação de dados por lotes, consolidados inicialmente em municípios e nos Estados. As universidades públicas e institutos de pesquisa, e aí destaco a Fiocruz, têm toda a expertise nesse campo. Alguns grupos de epidemiólogos brasileiros já estão em campo para contribuir. Vários atuam nas redes de vigilância epidemiológica e muitos têm grande experiência em grandes bases, do tipo Big Data, e em análise de dados dinâmicos. 

Com essa rede de pesquisadores composta e coordenada, precisaríamos de três a quatro pontos da curva para avaliar tendências de aumento, estabilidade ou queda. Isso quer dizer três a quatro dias. 

Em quais medidas a política de Saúde precisaria se concentrar nesse momento, que ainda é inicial na alta que teremos?

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As autoridades sanitárias do Brasil têm falado muito em UTIs, insumos e equipamentos. Isso é super importante para salvar vidas, especialmente em grupos de risco, considerando a evolução clínica da doença nos casos graves. 

Mas, do ponto de vista de controle da epidemia, precisamos focar no bloqueio das cadeias de transmissão da covid-19. As estratégias chamadas de mitigação, sem distanciamento social generalizado, não serão eficazes para reduzir o impacto da pandemia.

Para achatar a curva epidêmica, como está se falando, a ponto de reduzir ao máximo os danos sociais e epidemiológicos, será preciso recorrer a estratégias chamadas de supressão. Isso quer dizer drástica redução do contato social, com medidas complementares de descontaminação permanente. Há várias modelagens teoricamente robustas, e consistentes entre si, que corroboram essa visão. 

O número de leitos no País preocupa?

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Certamente que preocupa. Mesmo antes da pandemia tínhamos um déficit de capacidade instalada em UTIs em todo o território brasileiro. Era um déficit grande, agravado pela brutal desigualdade de disponibilidade no que se refere a classes sociais. 

Essa situação se agravou demais com o desfinanciamento do SUS nos últimos anos e o viés de privatização dos sistemas públicos de saúde, educação e proteção social. É claro que não se trata somente de quantitativo bruto de leitos, e sim de capacidade operacional desses leitos. 

Isso inclui disponibilidade de equipamentos, como respiradores, e equipes treinadas para fazer as UTIs funcionarem otimizadas. Tem se falado muito da previsão de falta de máquinas. Isso é grave e preocupante, com certeza, mas penso que a questão de pessoal de saúde qualificado para o SUS é ainda mais séria. Uma equipe capacitada para prestar cuidados intensivos, médicas, enfermeiras, técnicas, pessoal de apoio, não se forma em dias ou semanas. A pandemia pode revelar que também temos um apagão de profissionais de saúde. 

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Se os casos confirmados hoje estão subnotificados, em quais dados é mais importante prestar atenção neste momento? 

A questão é que precisamos de dados melhores. Recomendo que rapidamente se realize um estudo epidemiológico, tipo fast-track, ágil e objetivo, para estimar o que chamamos de microindicadores de morbidade. São dados internos à população afetada por um problema de saúde como a infecção pelo novo coronavírus. São muito úteis para planejamento e alocação de recursos. 

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Servem bem para orientar medidas de controle, prevenção e também operação do sistema de cuidado em saúde. Risco, morbidade, letalidade, virulência e patogenicidade (a capacidade do vírus em causar doença) são conceitos elementares da Epidemiologia. 

Além de ajudar na decisão para alocar recursos, um estudo desse poderia ajudar profissionais de saúde tomar decisões no tratamento, por exemplo?

Um estudo com esse desenho pode, emergencialmente, estimar coeficientes de letalidade, virulência e a patogenicidade para a população brasileira. Aí deixaremos de depender de análises de riscos feitas em outros países, com perfis demográficos totalmente distintos, em outros contextos assistenciais. Teremos um conhecimento técnico mais apurado da forma como a pandemia se apresenta no Brasil. 

A subnotificação enviesa o denominador do coeficiente de letalidade. O objetivo principal e imediato desse rapid assessment seria evidentemente estimar a subnotificação. Para ter um panorama nacional, esse estudo deve ser feito em diferentes regiões. Certamente será realizado selecionando os epicentros internos da pandemia no Brasil.

Nesta terça, 24, o presidente Jair Bolsonaro questionou o fechamento de escolas e disse que o País precisa voltar à normalidade. É possível voltar à normalidade neste momento? 

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Sei que isso implica desafios de logística, comunicação e coordenação entre política pública e mobilização popular, agravados nesses tempos de fake news, redução do Estado e perda de credibilidade dos governantes e das instituições. Infelizmente, frente à crise, o governo federal está dando sinais cada vez mais preocupantes e ambivalentes, no limite da irresponsabilidade. 

O ministro da Saúde, que aparentemente tem maior conexão com a realidade e revela algum grau de confiança nas ciências, encaminha medidas orientadas por evidências e projeções científicas. Mas o presidente da República, seu núcleo familiar, a corte palaciana, alguns ministros de perfil medieval, seus representantes no Congresso, desmentiram seguidamente a autoridade sanitária. 

Ridicularizam a ciência e os profissionais e pesquisadores da saúde, tensionam as relações sociais e institucionais, fazem tudo para reduzir a radicalidade necessária da estratégia de contenção dos riscos. É muita irresponsabilidade. Por causa disso tudo, a sofrida sociedade brasileira poderá pagar um alto preço. Mas isso será cobrado deles, porque saúde é política. 

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