'É um risco enorme', diz diretor da Anvisa sobre corrida a farmácias por cloroquina para coronavírus

Testes que mostram resultado efetivo do remédio contra covid-19 são iniciais, diz contra-almirante Antonio Barra Torres

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Por Eliane Cantanhêde
Atualização:

BRASÍLIA - O diretor-presidente substituto da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), contra-almirante e médico Antonio Barra Torres, fez um alerta em entrevista ao Estado para que os brasileiros não repitam o erro de americanos e europeus de correr às farmácias para comprar a cloroquina, anunciada pelo presidente Donald Trump como capaz de “virar o jogo” e curar a covid-19.

Antonio Barra Torres, diretor-presidente substituto da Anvisa Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

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Segundo Barra Torres, que está em contato permanente com a correspondente da Anvisa nos EUA, a Food and Drug Administration (FDA), os testes ainda são preliminares e o uso do medicamento sem indicação médica pode causar fortes efeitos colaterais. Além disso, ele demonstrou o temor de que a cloroquina possa faltar nas farmácias para quem realmente precisa, os pacientes com malária, lúpus, artrite e outras doenças reumáticas. “Não comprem!”, clamou, avisando que a Anvisa está vetando a partir desta sexta-feira, 20, a exportação do produto.

Confira os principais pontos da entrevista:

Estado: A cloroquina vai mesmo “virar o jogo”?

Barra Torres: Não é bem assim. A cloroquina e seus isômeros, ou seja, os produtos da mesma família, têm uso consagrado há décadas para malária, lúpus, artrite e outras doenças reumáticas, mas é preciso a todo custo evitar a histeria e o pânico que levaram a uma corrida às farmácias pelo produto nos Estados Unidos e na Europa e começou a acontecer no Brasil. Atenção! Tenho contato direto com a cúpula da FDA e eles me garantem que não há resposta e efeitos positivos comprovados para pacientes da covid-19 nem está garantida a segurança para quem use o produto sem indicação médica. É um risco enorme.

Estado: Em que fase estão os estudos?

Barra Torres: Ainda na fase do teste in vitro, laboratorial, muito distante de comprovações e muito menos de uso contra o coronavírus. A FDA me garante que não escreve, não endossa, não avaliza o uso para esse vírus. E foi com base nisso que decidimos na Anvisa soltar resolução ainda hoje (sexta-feira) para controlar a venda e o estoque da cloroquina. O Brasil é um grande produtor, mas o custo final de produção é muito barato, assim como o valor de venda ao consumidor. Assim, poucas indústrias têm interesse em produzi-lo, como o Laboratório Farmacêutico do Exército, em Benfica, no Rio. Se há uma correria inútil e perigosa às farmácias, isso pode ameaçar os estoques. A Anvisa levantou os dados sobre a produção e os estoques disponíveis e o resultado é tranquilizador, mas tomamos providências.

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Estado: Já está faltando cloroquina no Brasil?

Barra Torres: Posso garantir o seguinte: o que sumiu das prateleiras vai voltar.

Estado: Quais as providências e o que diz a nova resolução?

Barra Torres: A Anvisa está restringindo qualquer exportação do produto, que vai depender de anuência expressa da agência e vou logo adiantando: essa anuência não será dada. É o mesmo princípio para instrumentos e materiais que são absolutamente necessários dentro do Brasil num momento como este: ventiladores mecânicos, máscaras de proteção individual... Assim, estamos alertando os brasileiros de que não é verdade que a cloroquina seja indicada e cure o coronavírus e estamos alertando os estrangeiros que não tentem vir aqui comprar nossos estoques do produto, porque não vão conseguir. Já imaginou se um ricaço estrangeiro chega aqui e leva tudo para vender a preço de ouro lá fora? Estamos garantindo: nossos pacientes de lúpus, malária, etc, em primeiro lugar. 

Estado: Esse controle não vai soar como confirmação de que a cloroquina vale para o coronavírus?

Barra Torres: Se algum dia, muito lá adiante, os estudos sobre o uso para coronavírus evoluírem positivamente, ótimo. Mas não é por isso que estamos segurando os estoques, é para garantir o abastecimento dos pacientes tradicionais para os quais o produto e indicado. Aliás, sob exigência de receita médica.

Estado: Então, Donald Trump foi precipitado e irresponsável ao lançar o nome da cloroquina no ar?

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Barra Torres: Ele fez isso? Eu não tinha essa informação.

Estado: Não?! Ele disse ao mundo que a cloroquina tem bons resultados para o coronavírus.

Barra Torres: Bem. Se ele disse isso, teoricamente falou a verdade. Mas os testes são ainda muito iniciais, não se sabe como vão evoluir.

Estado: E o álcool gel? Vai continuar faltando?

Barra Torres: O Laboratório Farmacêutico da Marinha está produzindo em escala industrial e já soltamos resolução simplificando o processo de autorização para outros laboratórios produzirem também. Os do Exército e da Aeronáutica estão se preparando, além de outros, privados. A Ambev também já desviou parte da sua produção (de cerveja) para álcool gel e a ministra Tereza Cristina (Agricultura) me falou hoje (sexta) sobre a disposição dos produtores de álcool e açúcar de também colaborarem. Precoce dizer que vai haver álcool gel para todo mundo, mas com certeza vai ficar melhor do que está.

Estado: E os preços? Milhões de brasileiros não têm nem água nem como comprar sabonete...

Barra Torres: Bem, muitos falam em fazer doação e não em venda para o SUS, as UPAs, os hospitais públicos, mas não tenho como interferir nisso. Álcool gel não é medicamento, é saneante.

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Estado: Por que fechar a entrada de estrangeiros da Europa e da Ásia, por exemplo, e não para os dos Estados Unidos, que também têm alto grau de contaminação e muitos mortos?

Barra Torres: Não sei. Sei que recomendação técnica não há. A Anvisa faz um parecer eminentemente técnico, citando genericamente “estrangeiros”, sem listar países, e envia para os ministérios da Justiça e da Saúde, a quem cabe analisar outras questões, como interesses econômicos e reciprocidade (fecha lá para brasileiros, fecha cá para os daquele país).

Estado: Inclusive o interesse político?

Barra Torres: Ah, sim. Com certeza. 

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