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Eles recorreram a hospitais privados na crise da covid. Agora, lidam com dívidas estratosféricas

Famílias que usaram sistema particular de saúde se mobilizam para honrar os débitos com as instituições. Rifas, vaquinhas online e até venda de casa são meios para quitar as contas

Foto do author Jayanne Rodrigues
Por Jayanne Rodrigues e Sarah Nicoli
Atualização:

O avanço da covid-19 nas cidades brasileiras em 2021, ano em que os indicadores da pandemia bateram recordes no País, levou diversas famílias a recorrerem a serviços de hospitais privados em momentos de urgência, na expectativa de conseguirem acesso a leitos e assistência que não encontraram na rede pública. Agora, diante de contas com cifras que chegam a centenas de milhares de reais, elas se mobilizam para honrar as dívidas que se acumularam.

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Relatos de dívidas com instituições particulares de saúde se multiplicam nas redes sociais. São famílias que buscam ajuda de conhecidos e desconhecidos para pagarem a conta do hospital que tratou entes contra a covid-19. Em alguns casos, os pacientes não sobreviveram e o luto se mistura à batalha para reunir a quantia devida. A mobilização também envolve rifas e vaquinhas online e gente que teve de vender veículos e até a própria casa.

Segundo entidades de hospitais privados e especialistas, os custos para internar pacientes, já elevados, cresceram ao longo do ano por causa da alta no preço dos remédios, como o kit intubação. Nessas situações, apontam, há ainda risco grande de inadimplência. 

Enquanto a família de Gustavo Ferreira, de apenas 22 anos, enfrenta um processo doloroso após a morte prematura do jovem, eles também precisam encarar outra adversidade: uma dívida hospitalar que chega a R$ 219 mil reais. "A gente foi surpreendido com a conta do hospital", afirma Victor Vasconcelos, primo de Gustavo.

A primeira conta gerada pelo Hospital Santa Juliana, em Rio Branco, foi de R$104.795,55 e somente o gasto com medicamentos ultrapassa R$ 60 mil reais. Imersos nessa situação, o processo de luto foi negado aos pais de Gustavo. "Quis dar aos meus tios o direito de sofrer", desabafa Victor que iniciou uma campanha online para auxiliar o pagamento da dívida. Por se tratarem de contas altas, mesmo após significativa mobilização nas redes sociais, a vaquinha ainda não alcançou um terço do valor total necessário para pagar o hospital.

Logo quando a família da educadora Eliete Maia, de 42 anos, soube que a situação dela era grave - 90% do pulmão comprometido -, cogitaram transferi-la do hospital público em que estava internada na capital acriana para o Santa Juliana, o mesmo em que Gustavo ficou hospitalizado. A possibilidade foi descartada rapidamente após indicações de médicos locais que orientaram mover a paciente para um hospital de São Paulo, onde Eliete teria mais assistência.

Entretanto, no auge da pandemia, a luta pela vida requer gastos elevados. Com um depósito inicial de R$ 50 mil reais, Eliete foi transferida para o Hospital Incor, na capital paulista, no dia 11 de junho. 

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Segundo a sobrinha dela, Patrícia Andrade, a diária do hospital chega a R$ 10 mil reais e os honorários médicos alcançam R$ 2 mil reais, diariamente. Para pagar toda a conta médica, Patrícia também promoveu uma vaquinha online para arrecadar recursos e a família já recorreu a empréstimos, vendeu um carro e colocou a casa à venda. "A vida dela é tudo", relata a sobrinha.

O professor Alexandre Guidice acumulou uma dívida superior a R$ 100 mil por três dias de internação pela covid-19; ao lado da esposa Marina Moura, ele lançou uma campanha virtual para quitar o débito Foto: ANDRE MOREIRA / ESTADÃO

Sobreviventes que receberam alta do hospital também foram surpreendidos com uma dívida alta. É o caso do professor Alexandre Guidice, de 35 anos. Mesmo com plano de saúde, após 10 dias de internação no Hospital Primavera, em Aracaju, o professor foi recebido com uma fatura de mais de R$ 100 mil reais. 

"São valores que a gente não sabe de onde eles tiram", afirma Mariana Moura, de 31 anos, esposa de Guidice. Mariana relata que enquanto o marido estava entubado, a conta foi enviada via aplicativo de mensagens sem qualquer detalhamento de quais serviços estavam incluídos na cobrança.

O valor é referente aos três dias em que o plano não cobriu as despesas da internação. Sem condições para quitar a dívida, Mariana agiu de imediato e, assim como boa parte dos endividados, lançou uma campanha virtual. 

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Com as doações, conseguiu pagar 40% da conta, mas o restante segue em negociação. Apesar da preocupação com a dívida, hoje ela tenta se concentrar na recuperação de Guidice, que ainda necessita de fisioterapia, fonoaudiologia e cuidados extras com uma lesão na perna que adquiriu durante a internação.

Os pais internados e uma conta difícil de ser ignorada: esse foi o cenário enfrentado pela jornalista Narjara Costa, de 37 anos. Para internar a mãe, Edileusa Costa, de 61 anos, no hospital privado São Camilo em Macapá, Narjara vendeu seu carro e deu entrada de R$ 15 mil reais. 

Pouco tempo depois, o pai da jornalista, Ronaldo Costa, de 64 anos, também precisou ser internado por causa da covid-19. Os custos das permanências na UTI alcançaram R$ 30 mil reais, por dia. "Muitas pessoas falaram que eu era corajosa por fazer isso, mas o que você faz por quem você ama?", arremata Narjara.

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Edileusa recebeu alta do hospital, mas Ronaldo não sobreviveu. Em meio à dor do luto, as dívidas não param de acumular. Para obter recursos, Narjara recorreu a rifas e vaquinhas nas redes sociais. Da conta de R$ 318 mil reais, ainda restam R$227 mil reais. 

A casa de Edileusa foi colocada à venda, mas o processo de negociação da dívida está parado, segundo a família, por causa de entraves com o Hospital São Camilo. "Eles pressionam muito e não negociam. E quando negociam, é muito difícil de pagar. Ali você tem de ter dinheiro", afirma Narjara.

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Paciente custa R$ 100 mil por mês, aponta federação

Cobranças de valores altos não envolvem, necessariamente, preços abusivos ou irregulares, mas ilustram a pressão causada pela crise sanitária. A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) divulgou neste mês comunicado no qual detalha os custos das internações privadas de covid-19. Segundo a organização, em abril, o custo médio por paciente por mês em UTI estava em R$ 100,6 mil, aumento de 27% em relação ao mês de janeiro, variação que também se relaciona com a alta de preço dos medicamentos do chamado kit intubação.

"Se envolver intubação e ventilação mecânica, os materiais e medicamentos utilizados são extremamente caros. Além disso, numa UTI a equipe assistencial fica ao lado do paciente 24h por dia", diz Walter Cintra, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV.

Isso pode explicar as altas faturas recebidas no caso de pessoas que precisaram recorrer ao sistema privado de saúde. Estes eventos catastróficos, como são chamadas as internações de pacientes em estado grave, também apresentam um enorme risco de inadimplência, já que muitos pacientes são internados em um ato de desespero da família.

Como saída para evitar dívidas internas, conforme Cintra, os hospitais particulares costumam tentar transferência do paciente para um hospital público. "O que, no presente caso, é muito difícil de conseguir, uma vez que o paciente buscou o serviço privado exatamente por não conseguir vaga no SUS", ressalta.

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Embora cada história apresente algum problema particular, a realidade que enfrentam é um reflexo estrutural do esgotamento nos hospitais públicos brasileiros. "Há uma demanda de assistência superior à capacidade de atendimento", afirma Cintra. Enquanto o Brasil tem quase 500 mil mortos pela covid-19, reverter essa situação pode ser uma tarefa árdua e que deve se estender a longo prazo. 

Procurada pela reportagem, a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), em nota, respondeu que a legislação impossibilita o pagamento antecipado em casos de emergência. Além disso, os acordos são permitidos entre paciente, hospital e seguradora. Sobre situações semelhantes às que foram apresentados nesta reportagem, a Anahp afirma que "não pode nem deve participar ou conhecer detalhes de operações comerciais ou financeiras de seus associados".

Até o fechamento desta matéria, nenhum dos hospitais mencionados responderam aos questionamentos enviados pela reportagem.

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