Em Pernambuco, a corrida incessante para liberar leitos

97% dos 600 leitos de UTI para Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) estão ocupados; familiares de pessoas infectadas relatam esperar até mais de uma semana para conseguir internação

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Por Felipe Resk
4 min de leitura

RECIFE - No meio da madrugada, a massagista Flávia Ferreira, 47 anos, acordou aos sustos com a gritaria na casa da frente. “Meu pai vai morrer! Meu pai vai morrer!”, desesperou-se uma vizinha diante da imagem do pai, um senhor de 70 anos, que convulsionava sobre a cama, após três dias de dor de cabeça, dor no corpo e falta de ar. Por se tratar de caso suspeito de covid-19, Flávia conteve a vontade de ir até lá. Da janela, conformou-se em acalmar a amiga.

Como a rua fica perto de um hospital, normalmente a ambulância aparece em minutos. Mas daquela vez o socorro demorou mais de uma hora para chegar à Campina do Barreto, bairro na periferia do Recife, para angústia dos moradores que não sabiam como ajudar. 

Segundo Flávia, houve um momento que um taxista até assumiu o risco e se prontificou em levá-lo à unidade médica, mas já não dava mais tempo. Eram 3h16 quando, sem assistência, ele parou de respirar.

“Os paramédicos chegaram, todos com aquelas roupas de proteção, pareciam homens da Lua. Constataram o óbito, entregaram um papel e foram embora”, relata a massagista. O corpo só foi removido ao amanhecer, pela funerária. “Foi uma cena triste. Depois disso, passei três dias com todas as janelas e portas fechadas com medo de o vírus entrar em casa.”

Recife é uma das capitais brasileiras em lockdown, mas movimento nas ruas continua Foto: Marlon Costa/Futura Press

O episódio aconteceu na sexta-feira, dia 15, e é um dos reflexos da iminência de colapso do sistema de saúde em Pernambuco, onde os diagnósticos de covid-19, só de abril para cá, saltaram de 95 para 27.759 casos – 46% destes, de paciente graves.

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Com hospitais lotados e até fila por leito de UTI, o Estado também ultrapassou a marca de 2 mil mortes, sem indicativo de desaceleração da curva.

De acordo com a gestão Paulo Câmara (PSB), 97% dos 600 leitos de UTI para Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) estão ocupados. Familiares de pessoas infectadas, no entanto, relatam esperar até mais de uma semana para conseguir internação. Na outra ponta, médicos e enfermeiros descrevem uma rotina de unidades sobrecarregadas, com equipes exaustas pelo trabalho e por ter de comunicar cada vez mais, por telefone, todas as mortes.

Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), destinadas a casos menos complexos, já precisam lidar com pessoas em estágio avançado de insuficiência respiratória. Sem tantos ventiladores mecânicos à disposição, socorristas se revezam para, na mão, manter o doente respirando. “O profissional fica bombeando manualmente com uma bolsa, para evitar que o paciente morra. Passa 30 minutos bombeando, depois troca para outro profissional e assim por diante”, conta um médico.

Embora seja dinâmica, não é raro que a fila por vaga em UTI supere 200 pessoas em Pernambuco e o próprio governo admite que precisa selecionar qual paciente deve ser transferido primeiro. “A priorização é realizada a partir da discussão técnica entre o médico solicitante e o médico regulador, levando em consideração, primeiramente, a gravidade do caso, a estrutura disponível e a qualidade do suporte clínico nas unidades de saúde onde cada paciente se encontra”, informa em nota.

Referência no tratamento da covid-19 no Recife, o Hospital Oswaldo Cruz opera em 100% da capacidade da UTI pelo menos desde o início de abril. “Quando abre uma vaga, a demora é só para fazer a limpeza do leito e o transporte do paciente. Entre a gente, o jargão é que não se espera nem esfriar o colchão”, diz o infectologista João Paulo França, contratado para atuar na pandemia. 

Mesmo em hospitais de referência, há relatos de momentos em que falta medicação. No comunicado, o governo de Pernambuco diz que todas emergências públicas têm capacidade de atender os casos mais graves. Também informa ter reforçado unidades de atenção primária, como as UPAs, com equipamentos e profissionais.

“Neste sentido, os pacientes que estão aguardando a transferência para centros de referência do coronavírus são assistidos em unidades de saúde que geralmente contam com estrutura de salas de estabilização, inclusive com pontos de oxigênio e respiradores”, afirma. “A Secretaria de Saúde de Pernambuco reconhece a gravidade do momento em todo o País e ressalta que vem tomando medidas para aumentar a estrutura da rede estadual.”

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Responsável pela maioria dos casos notificados, a região metropolitana do Recife é o epicentro da doença em Pernambuco. Para tentar conter o avanço, o governo decretou bloqueio na capital e em quatro cidades, o chamado lockdown. 

Com alto índice de transmissão comunitária no Recife, o coronavírus pegou até o alto escalão da administração pública. Só na última semana, foram diagnosticados com covid-19 o governador Paulo Câmara, a vice Luciana Santos, o chefe de gabinete Milton Coelho e o secretário da Saúde André Longo.

Na capital, a prefeitura abriu sete hospitais de campanha e anunciou a construção de 313 leitos de UTI desde o início da crise, mas só 114 (ou 36,4% do total), de fato, funcionam. Nos demais, faltam médicos. “Jamais imaginei passar por isso. A doença se espalhou muito rápido e mudou a vida de todo mundo. A cada dia, a letalidade se aproxima mais da gente”, descreve o advogado Lucas Mendes, 28 anos, que perdeu um amigo, de 36 anos e sem comorbidades, para o coronavírus. Segundo conta, quatro familiares também contraíram a doença.

Hoje, a preocupação maior de Mendes é com a avó – idosa de 86 anos, com problemas de artrose e portadora de Alzheimer – que vive no mesmo espaço dos outros parentes que foram infectados. Com sinais de interiorização da doença, a gestão Câmara anunciou construção de hospitais de campanha em municípios de referência como Caruaru, no agreste, e Petrolina, no sertão. Ao menos 153 das 185 cidades do Estado já notificaram casos da doença.

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