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Especialistas questionam estudo que aponta suposta proteção da nicotina contra coronavírus

A pesquisa francesa foi baseada em outros artigos que falam sobre a baixa incidência de fumantes entre pacientes com a covid-19

Por Mariana Hallal
Atualização:

SÃO PAULO - Um estudo francês publicado nesta semana levanta a hipótese de que nicotina – o principal ativo do tabaco – poderia proteger contra a covid-19. O trabalho revisou artigos recentes que mostraram uma baixa incidência de fumantes entre os pacientes sintomáticos infectados pelo novo coronavírus. No entanto, especialistas alertam para a fragilidade científica do estudo e reforçam os riscos do cigarro.

A revisão feita pelo neurocientista francês Jean-Pierre Changeux ressalta um estudo que analisou 500 pacientes sintomáticos da covid-19. "Entre estes pacientes, apenas 5% eram fumantes", disse o professor de medicina interna Zahir Amoura, responsável por este último estudo, em entrevista à agência internacional France Presse. O número equivale a 80% menos fumantes entre os pacientes da covid-19 em comparação à população de mesmo sexo e idade.

Estudo sobre a relação entre nicotina e coronavírus não é justificativa para o hábito de fumar Foto: Nilton Fukuda/Estadão

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A hipótese levantada por Changeux é que a nicotina impede o coronavírus de se fixar no receptor celular que costuma usar. Assim, ele não consegue penetrar nas células e se espalhar pelo organismo. A explicação foi dada pelo pesquisador à AFP.

De acordo com a agência, os cientistas pretendem seguir com o estudo e administrar adesivos de nicotina em três ensaios. Um deles será preventivo, para profissionais da saúde, e terá como objetivo identificar o papel protetor da substância. Os outros dois serão terapêuticos, para tratar pacientes hospitalizados e doentes mais graves em terapia intensiva. Essa fase depende de uma autorização e do apoio do Ministério da Saúde francês.

Especialistas da área, porém, afirmam que o estudo não tem confiabilidade. “Foi publicado em um local não indexado em bases de dados científicas e não foi avaliado por especialistas no assunto”, pondera Vitor Valenti, professor de fisiologia da Unesp e coordenador do Centro de Estudos do Sistema Nervoso Autônomo da universidade.

Valenti explica que para ter credibilidade são necessários testes experimentais, uma análise mais detalhada do estado de saúde dos pacientes fumantes com a covid-19 e a autorização do Comitê de Ética. 

Segundo o professor, o estudo não foi avaliado pelo comitê porque é uma revisão do que já havia sido publicado. “Precisa, ainda, de um estudo placebo e de um duplo-cego, que é quando nem o paciente e nem o pesquisador sabem o conteúdo da intervenção”, completa. O artigo também deveria ser avaliado por especialistas da área, o que não ocorreu.

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O pneumologista do Hospital Sírio Libanês, André Nathan Costa, afirma que já há outros artigos rebatendo a hipótese do estudo francês. Ele diz que pesquisas como essa são “sempre complicadas”. “Torturando os números você pode concluir o que bem quiser”, explica.

Além disso, o médico fala que, por causa da emergência do coronavírus, estão sendo publicados artigos sem revisão ou de modo mais apressado e que “jamais seriam publicados em situações normais”. “Está todo mundo tentando descobrir algo sobre uma doença nova, sem tratamento e com mortalidade elevada”, justifica. Costa aponta que a pressa para solucionar o problema pode levar a erros.

Os dois especialistas brasileiros reforçam que o estudo francês não justifica o hábito de fumar, que pode agravar doenças respiratórias, cardiovasculares e metabólicas. “O cigarro gera fumaça que lesiona os pulmões. O fumante tem uma pior função respiratória”, explica Valenti. Costa explica que o tabaco aumenta os riscos de infarto, enfisema, AVC, pneumonia e câncer.

Os pesquisadores da França também apontam os perigos da nicotina. “Não se deve esquecer que a nicotina é uma droga de abuso responsável pelo vício em fumar. O tabagismo tem graves consequências patológicas e continua sendo um sério perigo para a saúde”, afirmam ao final do estudo. / COM AFP

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