
05 de janeiro de 2021 | 11h47
Enquanto a vacina para o coronavírus for um recurso escasso, qualquer dose disponível deveria ser comprada pelo governo e aplicada na população de risco de seu país. Essa é a opinião do médico Marcio Sommer Bittencourt, mestre em saúde pública pela Universidade de Harvard e médico do centro de pesquisa clínica e epidemiológica do Hospital Universitário da USP.
"A vacinação é uma estratégia comunitária e não individual. O objetivo não é simplesmente proteger quem foi vacinado, mas criar o máximo de proteção comunitária para uma imunidade coletiva", disse. "Por que o governo não compra essa dose (que está sendo negociada com a iniciativa privada)? O governo tem dinheiro para comprar vacina. Comprar a vacina sai mais barato do que ter paciente internado na UTI. Qualquer vacina disponível tem que ser comprada pelo governo e tem que ser distribuída inicialmente para população de risco, independentemente de quem distribua", acrescentou.
Covaxin: o que se sabe sobre a vacina indiana contra a covid-19, aposta da rede privada no Brasil
A Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) anunciou no domingo, 3, que negocia a compra de cinco milhões de doses da Covaxin, imunizante contra a covid-19 fabricado na Índia pela farmacêutica Bharat Biotech em parceria com o Instituto Nacional de Virologia do país. A Covaxin faz parte do plano nacional de vacinação do Brasil e o Ministério da Saúde aguarda retorno da empresa sobre quantitativo de doses disponíveis e cronograma de entrega.
Para Bittencourt, a rede privada de saúde poderia colaborar na distribuição das vacinas pelo País, por exemplo. "Nos Estados Unidos, o governo ia usar farmácias privadas para ajudar na distribuição. Isso é excelente. Se puder, gente de fora da área de saúde ajudar na distribuição, na entrega, é ideal. Quanto mais gente ajudar, melhor. É como um ambiente de guerra. O trabalho voluntário sempre ajuda".
Qualquer vacina liberada pela Anvisa pode ser comprada por clínicas privadas. Se o imunizante tiver apenas liberação para uso emergencial, a empresa deverá aplicar as doses somente em grupos específicos, determinados pelo Programa Nacional de Imunização. Inicialmente, as clínicas privadas não devem ter acesso a muitas doses de vacinas para o coronavírus. Os principais laboratórios, como Pfizer, Moderna e AstraZeneca, se comprometeram em negociar suas doses apenas com governos.
"É lógico até do ponto de vista de relações públicas dos laboratórios. No meu entendimento, para nenhuma entidade pública é interessante deixar de negociar com quem mais precisa e negociar com quem menos precisa. Você tem um recurso escasso para vender. As empresas estão dispostas a vender as doses inicialmente com preço de custo, praticamente, ou com lucro mínimo. Não vejo sentido social deixar de distribuir para quem mais precisa", disse Bittencourt.
O advogado Paulo Almeida, diretor-executivo do Instituto Questão de Ciência, lembrou que o governo pode até interferir em uma eventual compra de doses de vacina da clínica privada. "Existe a prerrogativa jurídica de solicitar administrativamente essas vacinas por conta da situação excepcional em que a gente se encontra. Claro que mediante indenização. Caso haja importação de vacina, o governo pode solicitar que seja incorporada ao SUS", declarou.
Almeida não é contrário às clínicas privadas começarem a negociar doses de vacina. "Não é muito adequado ficar em um desses dois extremos: nem achar que toda vacina que chegar deva ser encaminhada para o Programa Nacional de Imunização (PNI) e nem achar que o mercado deve correr solto sem qualquer tipo de administração", disse.
"O que imagino que seja mais ético e correto a ser feito é apenas autorizar as vacinas a partir do momento que o plano federal estiver em ação. Não acho correto do ponto de vista ético disponibilizar algo no mercado privado sem que o público tenha pelo menos começado. Não seria bom ter agora ter em janeiro, fevereiro a vacina indiana no mercado privado sem o PNI ter dados os primeiros passos. Não há certo ou errado. Existem caminhos intermediários que podem ser trilhados. De aumentar a capacidade de vacinação sem prejudicar ninguém", encerrou.
Para Deisy Ventura, especialista em saúde global e professora de Ética da Faculdade de Saúde Pública da USP, é preciso que todos entendam que no contexto de uma pandemia, a imunização é um processo coletivo, não individual. “Há um limite no grau de proteção individual que uma vacina pode oferecer caso não exista uma estratégia clara e eficiente de imunização em curso”, disse ela. “A comercialização, caso ocorrida antes ou simultaneamente à campanha pública de imunização, constitui um grave problema ético e um risco para a saúde pública brasileira porque compromete a eficiência da estratégia de combate à doença.”
Ela destaca que no caso da covid-19, a vacinação deve ocorrer de maneira diferente de outras doenças: “Trata-se de uma vacinação que ocorrerá durante um momento de alta de casos e óbitos, existindo ainda incerteza sobre a duração e a intensidade da proteção das diferentes vacinas.”
“A repercussão disso é muito grave”, diz Umbeliana Barbosa, médica infectologista do Hospital Emílio Ribas, sobre a possibilidade de clínicas particulares passarem a oferecer a vacina contra a covid-19. “Vamos pensar na grande São Paulo, epicentro da epidemia. Se a vacina for acessível no sistema privado, a população de alta renda que vive nas regiões mais nobres da cidade será imunizada e vai interromper a cadeia de transmissão nessa população, nessas regiões, concentrando a circulação do vírus na periferia da cidade.”
Umbeliana ressalta a qualidade do sistema de imunização brasileiro, referência para outros países. “Temos um sistema de imunização extremamente efetivo, programa que é exemplo segundo a OMS para as políticas de saúde pública. Infelizmente, agora durante a pandemia de covid-19 a gente percebe que não há um alinhamento do governo federal para as políticas adotadas em relação à pandemia, principalmente em relação à vacina.”
Segundo ela, a imunização deve ser de responsabilidade do SUS, obedecendo à diretriz da OMS de que todos os países deverão fazer um esforço para que a sua população seja imunizada e para que a vacinação seja única e exclusivamente pelo sistema público de saúde, “inclusive em países em que o sistema de saúde pública não é universal como no Brasil, a exemplo dos EUA”.
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