Estados se mobilizam para monitorar síndrome infantil que pode estar associada à covid-19

Levantamento feito pelo ‘Estadão’ junto às secretarias estaduais de Saúde mostra que ao menos 14 Estados e o DF têm notificação confirmada ou suspeita do quadro inflamatório; doença rara ainda é pouco conhecida pelos médicos

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Por Ludimila Honorato
7 min de leitura

SÃO PAULO - Pelo menos 14 Estados e o Distrito Federal registram casos da síndrome que acomete crianças e adolescentes e pode estar relacionada à covid-19. Conforme levantamento feito pelo Estadão com as secretarias estaduais da Saúde, o Brasil contabiliza 144 pessoas identificadas com a condição ou com quadro suspeito e nove mortes, duas delas em análise. Diante dessa nova síndrome, sobre a qual ainda se estuda a relação com a covid-19, os Estados se mobilizam para fazer uma vigilância eficiente em saúde a fim de monitorar e notificar as ocorrências.

Grande São Paulo tem taxa de ocupação de leitos de UTI abaixo de 50% Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Os dados foram levantados pela reportagem entre 18 e 19 de agosto. Dos 22 Estados que responderam ao pedido da reportagem, Acre, Amazonas, Goiás, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Roraima e Tocantins informaram que, até agora, não têm registros da doença. Cinco secretarias não responderam ou a reportagem não conseguiu contato. Os números são diferentes daqueles divulgados pelo Ministério da Saúde no último balanço da pasta, que conta com informações até semana epidemiológica 30 (até 25 de julho).

Em nota, a pasta informou que a atualização e divulgação dos números são semanais, mas até a noite desta quinta-feira, 20, não havia novos dados disponíveis. Isso também explica a diferença entre os dados compilados pelo Estadão e os do governo federal. Conforme o órgão, até julho, 71 casos tinham sido registrados nos Estados de Ceará (29), Rio(22), Pará (18) e Piauí (2), além de três óbitos no Rio. Mas o Ceará, por exemplo, reporta 41 casos e duas mortes.

“São informações de diferentes datas. Até a semana epidemiológica (SE) 30, que corresponde às notificações até 25 de julho de 2020, o Ceará contava com 29 registros de casos da síndrome, sendo 1 óbito. Já na SE 31, o Estado somava 41 casos, com 2 óbitos”, explicou o ministério. Os casos se repetem em outros Estados, até mesmo com números menores.

No Pará, o ministério informa que há 18 casos, mas a secretaria estadual reportou apenas 7, que constam no próprio sistema nacional. A pasta explicou que as 18 pessoas foram diagnosticadas no Instituto Evandro Chagas, unidade de referência no Estado, que segue com um estudo sobre essa síndrome inflamatória. “Na ocasião do período de estudo em que esses casos foram diagnosticados, ainda não havia o monitoramento sistemático nacional dos casos. Desta forma, esses casos ainda estão sendo inseridos no formulário nacional”, disse o ministério.

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Doença passou por Europa e EUA

No fim de abril, países da Europa começaram a relatar um conjunto incomum de sintomas em crianças. Já no começo de maio, foi a vez de os Estados Unidos reportarem hospitalizações relacionadas ao quadro, que começa com febre e pode apresentar manchas vermelhas pelo corpo. O quadro descrito como síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) pode afetar pessoas de 0 a 19 anos. A maioria dos casos conhecidos tem relação com o novo coronavírus, mas, por ora, as evidências são inconclusivas quanto à relação de causa e efeito. Tem-se uma relação temporal, em que a condição é identificada semanas após a contaminação, mesmo depois de uma boa evolução da covid-19.

Embora os casos sejam recentes no Brasil, com orientações do Ministério da Saúde para notificação a partir de julho, há registros anteriores a isso. A Secretaria da Saúde do Rio, por exemplo, disse que o 1º caso foi notificado em 5 de março. A partir do momento em que os Estados começaram a ser notificados pelo ministério sobre a necessidade de monitoramento dos casos de SIM-P, alertas foram emitidos a todas as unidades de saúde e centros de operações de emergências foram criados. Elaborar informações que orientem os profissionais também faz parte da organização, como fez o Acre, ao produzir nota estadual e convocar reuniões com grupos estratégicos para alinhar as ações de atendimento e notificação.

Mesmo assim, é possível que o País enfrente mais um problema de subnotificação, ainda que menos grave do que da covid-19, pelo atraso no envio e atualização de dados ou pela dificuldade de diagnósticos. O ministério reconhece que “por se tratar de uma nova apresentação clínica, ainda pouco conhecida, e de características muito semelhantes à Síndrome rara de Kawasaki, é possível que se tenha subnotificações de casos relacionados temporalmente à infecção pelo Sars-CoV-2”.

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Dificuldades para identificar

“Como toda doença de notificação, tem delay entre a internação e o profissional de saúde fazer a notificação e coletar a notificação. É natural que tenha defasagem de números e podemos ter quadros que não foram identificados”, diz Marco Aurélio Sáfadi, presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). No último dia 7, a entidade publicou nota de alerta para a necessidade de notificação obrigatória da SIM-P em todo o Brasil.

Ele acredita que a situação de agora é diferente do surto do novo coronavírus. “A covid, claramente, tem subnotificação porque alguns casos são leves, assintomáticos, ainda não há disponibilidade suficiente de teste. No caso da síndrome, são poucos casos e casos que precisam de hospitalização. A tendência é que a subnotificação seja branda.”

Saulo Duarte Passos, professor titular de pediatria da Faculdade de Medicina de Jundiaí, também prevê subnotificação de casos da SIM-P e reforça a necessidade de atenção e vigilância. “O nosso sistema de notificação ainda é precário. Precisa de envolvimento maior das autoridades, dos profissionais de saúde, de sensibilização maior de todos.”

Um fator que pode comprometer a correta notificação dos casos é a semelhança que a SIM-P tem com a síndrome de Kawasaki. Sáfadi explica que ambas podem ser confundidas por apresentarem sintomas parecidos, mas a faixa etária acometida e as manifestações mais intensas na síndrome identificada após a covid-19 podem ajudar a diferenciar um quadro do outro. E como ela afeta vários órgãos e sistemas do corpo, pode ainda ser classificada como outra doença.

Passos destaca que o que pode distinguir as condições é a chamada tempestade de interleucina, substância que é a base da cadeia inflamatória na covid-19 e responsável pela inflamação nos pulmões. “O ideal é que tivéssemos um marcador de diagnóstico (para a SIM-P), mas não tem um exame nem existirá. Depende da sensibilidade clínica do profissional de saúde”, afirma Sáfadi.

Na Bahia, por exemplo, a secretaria da saúde contabiliza 18 notificações que, a princípio, se encaixavam na síndrome inflamatória multissistêmica. Dessas, 11 tiveram como diagnóstico final a SIM-P, 3 foram identificadas como síndrome de Kawasaki, 2 tiveram outras classificações e 2 ainda não têm confirmação.

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Meio de notificação pode variar

A orientação do ministério é que todos os casos suspeitos de covid-19 sejam notificados pelo sistema Sivep-Gripe, e aqueles que se encaixam na SIM-P, tendo alta hospitalar ou evoluído para óbito, também devem ser reportados por formulário online no software REDCap. Com base na definição de caso, o documento tem quase 50 campos a serem preenchidos, 14 deles obrigatórios, como Estado, data de notificação, gênero do paciente, data de nascimento, nome da mãe e sintomas. O campo destinado à raça/cor não é obrigatório.

Porém, na nota técnica da Secretaria de Saúde da Paraíba, é informado que, quando a notificação online não for possível, o formulário deverá ser impresso, preenchido e enviado ao serviço de vigilância epidemiológica da secretaria municipal em meio físico ou digitalizado. A pasta de Mato Grosso também disse que, segundo orientação do ministério, os casos de SIM-P podem ser comunicados por e-mail ou contato telefônico à Secretaria da Vigilância em Saúde. A depender do volume de casos e das condições das unidades de saúde, todos esses fatores podem contribuir para uma defasagem nos registros.

Internação é via de regra

Segundo os médicos, a internação de pacientes da síndrome é regra, até mesmo pela necessidade de tratamento com medicação intravenosa e observação do quadro clínico. Esse fator pode reduzir subnotificações, uma vez que a condição mais grave demandará ida ao hospital. “É até possível ter formas que se enquadrem no critério de síndrome inflamatória que não sejam hospitalizadas, mas é exceção”, diz o presidente do Departamento de Infectologia da SBP.

No Distrito Federal, quatro crianças foram identificadas com a síndrome potencialmente ligada à covid-19 (duas delas são de outros Estados), sendo que todas precisaram de internação. No Rio Grande do Norte, os oito diagnosticados também foram hospitalizados - quatro já receberam alta. Outros Estados também informaram à reportagem que a internação faz parte do manejo clínico da SIM-P.

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