Estudo brasileiro aponta possível 'reinfecção' e 'adoecimento em mais de uma ocasião' pela covid-19

Afirmação é feita com base em caso de paciente de 24 anos que voltou a apresentar sintomas do coronavírus 38 dias após ter testado positivo pela primeira vez

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Foto do author João Ker
Foto do author Ludimila Honorato
Por João Ker e Ludimila Honorato
Atualização:

SÃO PAULO - Uma técnica em enfermagem de 24 anos voltou a apresentar sintomas da covid-19 pouco mais de um mês após ter testado positivo em um exame RT-PCR, que identificou o Sars-Cov-2 no seu organismo em 13 de maio e, depois, em 27 de junho. A informação foi confirmada pelo Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, por meio de estudo conduzido pela Faculdade de Medicina da USP, e afirma que “a reinfecção e o adoecimento em mais de uma ocasião são eventos possíveis”. Após a divulgação do estudo, a universidade já investiga outros três casos, dois em São Paulo e um em Araraquara, de pessoas que teriam apresentado quadros similares ao da paciente.

A paciente começou a apresentar os primeiros sintomas da doença em 6 de maio, dois dias após ter entrado em contato com um colega de trabalho que testou positivo para a covid-19. Mesmo usando máscara cirúrgica, ela contraiu o coronavírus e sentiu dores de cabeça, mal estar, febre, fraqueza muscular, leve dor de garganta e congestão nasal. 

Testes de coronavírus em laboratório Foto: Axel Schmidt/Reuters

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Os sintomas foram concluídos em 10 dias e a paciente passou os 38 seguintes assintomática, trabalhando normalmente. Em 27 de junho, ela acordou com forte dor de cabeça, dor muscular, mal-estar, febre, dor de garganta, perda de olfato e de paladar e, nos dias seguintes, seu quadro clínico piorou, apresentando diarreia e tosse. Nesse período, dois de seus familiares também foram diagnosticados com o coronavírus.

Já no quinto dia em que os sintomas voltaram a aparecer, a paciente foi novamente diagnosticada com o Sars-Cov-2 por meio de um novo exame RT-PCR, que coleta amostras da garganta (orofaringe) e do nariz (nasofaringe) com uma haste flexível. O estudo divulgado pelo HC aponta ainda que os sintomas agudos voltaram a desaparecer no 12º dia dessa “segunda infecção”, mas a dor de cabeça e a perda parcial do olfato persistiram até a data de divulgação da pesquisa. Ele também afirma que, mesmo 33 dias após a reincidência dos sintomas, a paciente ainda testa positivo para a covid-19.

“O presente caso apresenta forte evidência não somente de reinfecção por SARS-CoV-2, como de recidiva clínica da covid-19”, afirma a pesquisa, citando que apenas outro caso similar foi encontrado até o momento, em Boston, nos Estados Unidos. Ainda de acordo com o estudo, existe a possibilidade de que “um ou mais dos exames virológicos e sorológicos tenham apresentado resultado falso positivo”, mas ela é remota devido ao volume de evidências laboratoriais, clínicas e epidemiológicas.

Apesar de concluir que o caso “favorece a hipótese de reinfecção”, o estudo aponta que é preciso aprofundar ainda mais as pesquisas. “Essa constatação traz implicações clínicas e epidemiológicas que precisam ser analisadas com cuidado pelas autoridades em saúde.”

Reinfecção permanece incerta

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Em meados de abril, a Coreia do Sul relatou que ao menos 116 pessoas recuperadas da infecção voltaram a testar positivo para o novo coronavírus. Uma semana antes, o país havia descrito 51 casos desse tipo. Uma das hipóteses levantadas na ocasião dizia que se tratava, na verdade, de uma reativação do vírus, que não foi totalmente eliminado e permaneceu “escondido” no organismo. Outra suposição era que os exames pudessem apresentar resultados imprecisos.

Essas deduções ainda permanecem e a infectologista Raquel Silveira Bello Stucchi, professora e pesquisadora do Departamento de Clínica Médica da Unicamp, comenta que, até o momento, ainda não existem estudos que comprovam casos de reinfecção. “Para falar que é reinfecção, tem de provar que o vírus do primeiro e do segundo são diferentes”, afirma. A médica explica que a segunda infecção teria de ser provocada por um vírus com alguma modificação genética mínima, não necessariamente uma mutação, que atestaria a mudança.

Vitor Engrácia Valenti, pesquisador e professor livre-docente na Unesp de Marília, tem acompanhado a divulgação de estudos sobre o novo coronavírus e diz que alguns deles mostram que o Sars-Cov-2 tem uma proteína específica que faz sofrer mutação. “Isso tem impacto forte no poder de ele infectar mais fácil as pessoas.”

Casos semelhantes

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O relato da USP cita outros casos de possível reinfecção e fala em “recrudescência dos sintomas clínicos”, ou seja, haveria uma exacerbação ou piora dos sintomas após uma remissão temporária. “O que é possível de explicar é que o vírus permaneceu no corpo dela, ela se recuperou, mas pode ter tido um período de estresse e o organismo não estava totalmente preparado. Pelo fato de o vírus ainda circular (no organismo), ela voltou a desencadear sintomas. Considero essa hipótese mais plausível, porque não considera reinfecção, mas reativação”, diz Valenti.

Fernando Bellissimo-Rodrigues, professor da FMRP/USP e um dos responsáveis pelo estudo brasileiro, diz que ainda não se pode afirmar que esse foi o caso da técnica em enfermagem, mas considera "improvável que ela tenha ficado assintomática e depois o vírus tenha sido reativado". Leia entrevista completa mais abaixo.

Outros relatos apresentam histórico semelhante. Em 22 de julho, o jornal The New York Times contou o caso da fonoaudióloga Megan Kent, de 37 anos, que testou positivo para covid-19 em 30 de março e depois em 12 de maio, após fazer quarentena e se sentir melhor. “Dessa vez foi cem vezes pior”, ela disse. Novamente, a explicação mais plausível foi que o vírus permaneceu em algumas partes do corpo dela e ressurgiu em seguida.

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Antes, em 4 de julho, um estudo publicado no The American Journal of Emergency Medicine apresentou um caso semelhante de uma mulher de 82 anos, da cidade de Boston, que, após recuperar-se da covid-19, teve novas comprovações respiratórias, radiográficas, laboratoriais e de exame RT-PCR referentes à reinfecção. Os pesquisadores disseram que, embora fosse possível, existem explicações alternativas.

“Resultados dinâmicos de RT-PCR (isto é, testes positivos e negativos oscilantes) foram descritos em pacientes com covid-19 com testes positivos ocorrendo após recuperação sintomática, radiográfica e vários testes negativos. As explicações alternativas mais comuns propostas para a verdadeira reinfecção incluem disseminação viral prolongada e testes imprecisos”, afirmaram os cientistas no artigo.

Duração da imunidade

Outros estudos apontam que a imunidade contra o novo coronavírus seria de curta duração, uma vez que dois ou três meses após ser infectada, a pessoa teria baixa dos anticorpos e, assim, estaria desprotegida. A justificativa é um tanto equivocada, segundo avalia Vitor Valenti.

“Quando você faz esse exame (teste rápido) depois de dois, três meses, os anticorpos caem, mas isso não significa que caiu a imunidade contra o novo coronavírus. A pessoa que tem número pequeno de anticorpos, se for exposta de novo, os mesmos anticorpos vão aumentar concentração no sangue e combater vírus”, explica o pesquisador da Unesp. Ele completa que essa queda de anticorpos é uma resposta fisiológica natural do organismo, pois se a concentração fosse alta por muito tempo, a pessoa poderia ter outros problemas de saúde.

Há ainda estudos que falam de uma possível proteção de reinfecção, como o publicado pela revista Science em maio. Nele, macacos-rhesus infectados com uma dose de Sars-CoV-2 não mostraram sinais de reinfecção após se recuperarem de uma primeira infecção. Nesse ponto, Valenti cita que algumas pesquisas indicam que pessoas que já foram expostas a outros coronavírus, como o Sars-Cov-1, teriam um sistema imune capaz de reconhecer o novo coronavírus e dar resposta de defesa.

Entrevista

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Abaixo, leia uma entrevista com Fernando Bellissimo-Rodrigues, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e um dos responsáveis pelo estudo.

Com base no estudo, podemos afirmar que a pessoa infectada pela covid-19, mesmo depois de curada, continua como um vetor de transmissão?

No caso específico dela, não podemos falar isso porque os familiares que estavam confinados com ela tiveram os sintomas antes de ela apresentar a segunda infecção. Então, é possível e provável que ela é quem tenha contraído de um deles. 

Nessa segunda infecção, a paciente apresentou um quadro com sintomas mais agudos e inéditos, como diarreia, perda de olfato e paladar. É possível que a segunda infecção seja mais forte?

No caso dela, foi. Mas ainda não dá para dizermos que isso vá acontecer com todas as pessoas. Não podemos afirmar o que vai acontecer com outras pessoas com base apenas nesse caso.

E como podemos afirmar que o vírus não estava adormecido, mas foi contraído novamente?

É uma excelente pergunta. Não podemos afirmar que isso não tenha ocorrido, mas nos parece improvável que ela tenha ficado assintomática e depois o vírus tenha sido reativado, porque ela se reexpôs a uma pessoa confinada e comprovadamente positiva. Ela teve um fator provocador que foi uma pessoa, isso aumenta a probabilidade de ter havido uma reinfecção e não uma reativação de uma infecção anterior. 

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O senhor acha que esse caso abre margem para a hipótese de já haver uma mutação do sars-cov-2?

Não é impossível, mas é muito improvável. O exame do RT-PCR detecta fragmentos virais, não o vírus como um todo. Então, não podemos garantir que o vírus que a infectou da segunda vez foi exatamente o mesmo que da primeira. Porém, isso também não é muito provável, porque se tivesse ocorrido haveria outros casos semelhantes ao dela na comunidade. Então, todas as evidências apontam para que esse seja mais um problema da imunização dela do que uma mutação do vírus.

Já é possível estabelecer um fator determinante para que uma pessoa seja mais suscetível à reinfecção do que outra?

Ainda é muito cedo para afirmarmos isso, já que só temos dois casos assim na literatura até o momento, o outro em Boston. Após a divulgação do estudo, tem chegado ao nosso conhecimento outros casos que seriam semelhantes e a USP está investigando, dois em São Paulo e um de Araraquara. Só então poderíamos atualizar os dados e compará-los, para analisarmos a sorologia dos paciente. Mas por enquanto, é muito cedo para afirmar isso.

Esse caso pode comprometer a ideia da “imunização de rebanho” para a covid-19?

Não, ela continua uma possibilidade. Muito provavelmente esse é um caso raríssimo. A gente ainda acredita que a maior parcela de pessoas que contrai o vírus desenvolve a imunidade, só não sabemos quanto tempo ela dura. Se não houvesse a imunidade de rebanho, veríamos uma situação epidemiológica muito mais catastrófica do que a que temos agora. Se o que aconteceu com ela fosse comum, milhares de outros casos teriam sido notificados no mundo.  

A maior importância desse fato é tentar entender por que isso aconteceu e por que a imunidade dela não respondeu adequadamente da primeira vez, o que poderia nos ajudar a prepararmos melhor uma vacina, que não precise de duas doses e tenha mais possibilidade de fixação. 

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