Eu não dou conselho sobre relacionamentos nem que a pessoa me peça. Quando a gente pede conselho – em qualquer área, sobretudo nessa –, no fundo estamos buscando alguém para dividir a responsabilidade. “Quem mandou ouvir o Daniel? Culpa dele”, a pessoa vai dizer se tudo der errado. E se der certo vai agradecer a si mesma por ter ouvido seu próprio coração e nem lembrar do que eu disse.
A não ser em caso de canalhice. Quando estamos lidando com canalhas, aí acho que é minha obrigação falar alguma coisa. Não só como psiquiatra. Eu acho que é um dever de todo cidadão e cidadã avisar as pessoas quando elas estão se relacionando com alguém assim. Você pode achar difícil diagnosticar esse tipo de abuso, mas é mais fácil do que parece. Aqui vão algumas dicas para identificar essa gente – e para se livrar dela.
A estratégia perversa mais utilizada é apresentar mensagens ambíguas para o outro. Aquelas frases dúbias, que tanto podem indicar o desejo de continuar a relação como sinalizar a falta de compromisso. “Eu quero ficar o tempo todo com você, mas não quero te prender”, dizem. Quem está envolvido emocionalmente e ouve a frase, registra apenas a parte sobre o desejo de estar. Mas o canalha tem pronta na manga, para sacar a qualquer minuto, a história de que ele não queria nada sério: ele não disse que não se sentia bem em prender o outro? Sua defesa é dizer que avisou, o que não deixa de ser verdade. É desonesto, no entanto, porque ele sabe o tempo todo que lançar esse tipo de frase é uma forma de manter a relação como está. Ele conta com a atenção seletiva de quem se apega somente à esperança.
Trata-se de uma crueldade porque transforma a pessoa enredada num objeto. Desprezando seus sentimentos, ou melhor, aproveitando-se deles, estabelece-se uma relação assimétrica na qual um só obtém todas as vantagens do relacionamento sem nenhuma das responsabilidades. Tem à mão quem lhe dê afeto quando bem entender, por exemplo, mas não tem a menor obrigação de retribuir quando o outro é que precisa.
Essa lógica não se vê apenas nos relacionamentos amorosos. O canalha pode ser um patrão, uma chefe, uma daquelas pessoas que delegam todo o trabalho e celebram sua própria vitória quando as coisas dão certo mas culpam o time pela derrota quando dão errado. É o famoso “eu ganhei, nós perdemos”. É mais uma forma de obter os benefícios de mandar e ao mesmo tempo se isentar das consequências de suas ordens. Ter subalternos que obedecem é ao mesmo tempo poder e responsabilidade, mas esses patifes só querem ganhar sem pagar.
Até na política tem crescido a canalhice. E a essência é exatamente a mesma: o emprego de falas dúbias que podem ser enquadradas como melhor servir aos interesses do mandatário que as profere. Se as coisas vão bem, é graças ao que foi dito. Se dá tudo errado, aquilo não era uma fala oficial, eram bravatas, bobagens. A moda de governar pelas redes sociais é uma estratégia perfeita para os canalhas.
Quando políticos em cargos de poder fazem lives ou postagens, suas falas ficam convenientemente num limbo entre a comunicação oficial e a livre expressão de um cidadão. Com isso tais políticos podem usufruir das benesses do exercício do poder (exigindo obediência quando interessar), mas manter aberta a rota de fuga da responsabilidade (bastando desqualificar seu próprio discurso como mera retórica, se for melhor para eles). Todo bônus sem nenhum ônus.
O conselho para quem está numa situação assim é só um: saia dessa. Uma vez compreendido que a pessoa abusada está assumindo o ônus sem ganhar o bônus, fica claro que só há dois caminhos: ou se chama o canalha à responsabilidade – e ele terá de dar seu afeto, reconhecer seu papel no grupo, responder pelas consequências de suas ordens; ou então devemos retirar-lhe qualquer resquício de poder, negando-lhe o afeto, recusando-lhe obediência, ignorando suas ordens. Quando tomamos consciência e agimos assim pomos fim à canalhice tanto nas relações pessoais como nas de trabalho.
Quem sabe se fizermos isso acabemos também com os canalhas na política.
*É PROFESSOR COLABORADOR DO DEPARTAMENTO E INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (FMUSP)