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Gêmeos podem dar pistas dos males causados pelo vírus zika

Similaridades biológicas permitem identificação de diferenças relevantes; João Lucas tem microcefalia, Ana Vitória, não

Por Pam Belluck e Tania Franco
Atualização:

PAULISTA - Na cama ao lado de seu irmão, Ana Vitória da Silva Araújo agia como o bebê de 1 ano de idade que é, sorrindo e balbuciando. Brincou com uma baleia de pelúcia e arrancou a chupeta do irmão e o paninho para limpar a boca que estava no ombro do pequeno.

João Lucas da Silva Araújo, à esquerda, nasceu com microcefalia, mas sua irmã gêmea, Ana Vitória da Silva Araújo, à direita, não Foto: Adriana Zehbrauskas/The New York Times

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O menino, João Lucas, parecia não conhecê-la, com os olhos fechados e a boca fazendo movimentos de sucção, comportamento típico para um recém-nascido. Mas João Lucas tem a mesma idade da Ana Vitória; eles são gêmeos.

João Lucas nasceu com microcefalia e outros problemas graves, pois sua mãe foi picada por um mosquito infectado com o vírus zika durante a gravidez. Porém, o vírus que atacou seu cérebro, ainda no útero, aparentemente poupou a irmã.

Os irmãos são um dos nove pares de gêmeos identificados na crise de zika no Brasil, e os cientistas esperam que eles possam fornecer alguma explicação sobre como o vírus age, e por que causa um dano tão cruel em alguns bebês e não em outros.

Gêmeos frequentemente dão pistas para mistérios médicos porque suas similaridades biológicas permitem que os cientistas identifiquem diferenças relevantes. Determinar por que um dos bebês foi infectado no útero enquanto o outro não pode mostrar como o zika atravessa a placenta, como entra no cérebro e se alguma mutação genética deixa um feto mais resistente ou suscetível à infecção.

Até recentemente, gêmeos que tiveram contato com o zika no Brasil pareciam seguir um padrão, segundo Mayana Zatz, geneticista e bióloga molecular da Universidade de São Paulo (USP). Os casos incluem dois pares de gêmeos idênticos, onde os quatro bebês têm microcefalia. Há também seis outros gêmeos fraternos, em que um tem microcefalia, enquanto o outro parece não ter sido afetado.

Como gêmeos idênticos compartilham uma placenta enquanto os fraternos quase sempre têm placentas separadas, Mayana e outros especialistas sugeriram que o vírus zika pode ter penetrado em uma e não na outra.

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Neide carregando Ana Vitória, à direita, e Valéria com João Lucas, à esquerda. Valéria é a guardiã do menino Foto: Adriana Zehbrauskas/The New York Times

"Talvez tenha entrado através de um ponto fraco na membrana placentária; quando um feto 'chuta a placenta', a inflamação na membrana causada por esse hematoma também pode se tornar uma porta de entrada", disse o doutor Ernesto Marques, especialista em doenças infecciosas da Universidade de Pittsburgh e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Recife, em Pernambuco.

Um par de gêmeos quebrou o padrão: são fraternos e tinham placentas separadas, mas ambos têm microcefalia e outras complicações causadas pelo zika. "O menino foi mais afetado que a menina, mas os dois são casos graves", disse Mayana.

Esse caso complica a teoria.

A doutora Vanessa van der Linden, que ajudou a descobrir que o zika causa microcefalia e tratou de alguns dos gêmeos, disse que uma explicação pode ser que, em alguns casos fraternos, o vírus penetrou as duas placentas, mas os bebês tinham diferenças genéticas que fizeram apenas um deles se infectar, ou "reagir de forma diferente".

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Marques sugeriu outra possibilidade: que o gêmeo prejudicado foi exposto ao zika antes que o corpo da mãe - ou a placenta - desenvolvesse respostas imunes ao vírus, e o segundo feto foi infectado um pouco mais tarde.

"Deveria atingir os dois na mesma hora. No entanto, se o vírus chegou a um dos bebês antes de a mãe ter de fato desenvolvido respostas imunes protetoras, então temos um problema."

O laboratório de Mayana Zatz recolheu sangue dos gêmeos afetados e dos não afetados e está desenvolvendo células cerebrais a partir de suas células-tronco. E faz testes para ver quais dessas células são suscetíveis à infecção com o zika. Isso poderia mostrar se alguns gêmeos têm predisposições genéticas que aumentam a probabilidade de infecção. Em última análise, ela espera encontrar uma interação de fatores que podem variar em cada gravidez de gêmeos.

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"Eu acredito que a explicação será complexa", afirmou.

Por enquanto, a razão pela qual João Lucas foi afetado pelo vírus e sua irmã não permanece um mistério.

Quando os dois nasceram, em agosto de 2015, sua mãe, Neide Maria Ferreira da Silva, não sabia que ele tinha microcefalia ou algum dano cerebral. João Lucas nasceu primeiro e foi temporariamente colocado em uma câmara de oxigênio por causa de problemas respiratórios.

O médico da maternidade especializado em recém-nascidos com deficiências recomendou uma consulta a um geneticista, mas Neide achou que, se houvesse problemas, não seriam muito sérios.

Ela já tinha dado à luz 10 crianças, a primeira quando tinha 17 anos. Neide, de 42 anos, depois de um mês, levou João Lucas ao geneticista. "Disse que o cérebro dele não era como o nosso, que ia ser sempre muito pequeno", recorda-se.

Ela ficou chocada. "Não estava triste ou chateada. Pensei em como ia ser quando ele crescesse e percebi que teria que cuidar dele mais do que das outras crianças."

Mas os sintomas do menino começaram a sobrecarregá-la. "Ele dormia e, cinco minutos depois, começava a gritar."

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Neide ficou especialmente alarmada com as convulsões de João Lucas, quando ele "ficava roxo" e parecia que "seus olhos iam saltar para fora".

Às vezes, ele fica muito agitado e arranha o próprio rostinho, disse ela. "Até sai sangue."

Incapaz de cuidar do bebê, Neide começou a levá-lo à prima de um vizinho para que cuidasse dele. A cuidadora, Valéria Gomes Ribeiro, de 46 anos, levou o menino à sua primeira consulta com um neurologista. O médico receitou clonazepam - medicamento contra a ansiedade - para acalmá-lo, mas a mãe ainda achava que, quando João Lucas ia para casa, muitas vezes algo dava errado.

Segundo Neide, ele desenvolveu uma pneumonia e problemas para se alimentar, e até o que ela chama de "febre emocional", porque o pequeno parecia sentir falta de Valéria.

A filha de 11 anos de Neide ficou grávida e teve um aborto, por isso a agência de proteção à criança lhes fez uma visita. Então, ela disse à assistente social que uma amiga estava cuidando de seu bebê com zika. A agência fez uma investigação e iniciou um processo para remover João Lucas de sua casa. Para evitar que ele fosse colocado em um abrigo, as duas mulheres concordaram que João Lucas viveria com Valéria, e que Ana Vitória ficaria com Neide. Por ordem do juiz, João Lucas passa os domingos na casa da sua mãe biológica.

Valéria enfeita João Lucas com uma pulseira e um colar com uma figa, um amuleto, e tenta controlar todas as consultas do menino, que incluem visitas com uma psicóloga, que mostra ao garoto um painel de quadrados pretos e brancos para estimular sua visão e o esfrega com uma bucha de palitos de picolé para estimular o tato.

Em uma visita no ano passado à casa de Valéria, em uma rua de terra, com o Salmo 23 pendurado em uma parede amarela, Ana Vitória andava para lá e para cá, segurando um pedaço de bolo com uma mão e batendo na mesa com a outra. Ela se aproximou da boca do irmão e tocou a fita verde que os terapeutas puseram ao redor de seus lábios, dos dedos, no queixo e nas costas para relaxar os músculos contraídos. Neide sacudiu um chocalho na frente de João Lucas, mas ele não respondeu.

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Até agora, Ana Vitória - como os outros gêmeos fraternos sem danos cerebrais óbvios - parece perfeita, mas os médicos monitoram a ela e aos outros. No exame de um ano da menina, ela estava com o desenvolvimento um pouco atrasado. Seu vocabulário era limitado, e quando o médico pediu, ela demorou a apontar para a mãe, disse Neide.

Isso pode ter relação com o zika, mas, segundo ela, "o médico nunca disse que tem 100% de certeza de que não tenha problemas".

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