Gripe ainda traz risco de surto global mortífero

Cem anos após pandemia que matou até 100 milhões, influenza continua sendo ameaça

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Por Fabio de Castro
Atualização:
Enfermaria provisória montada em escola no Rio, em novembro de 1918 Foto: ACERVO: BIB. GUITA E JOSÉ MINDLIN

SÃO PAULO - Há cem anos, a Primeira Guerra Mundial devastava o planeta, mas um desastre muito pior estava prestes a começar. No dia 11 de março de 1918, nos Estados Unidos, era registrado o primeiro caso do que viria a ser a pandemia mais mortífera da história. Enquanto a guerra matou 20 milhões de pessoas em quatro anos, o vírus do que ficou conhecido como gripe espanhola mataria de 50 milhões a 100 milhões em apenas alguns meses, infectando um terço da população mundial. Um século depois, se a humanidade corre algum risco de enfrentar uma nova pandemia como aquela, vírus como o da influenza continuam sendo o principal candidato.

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É o que apontam especialistas ouvidos pelo Estado. “Os vírus respiratórios são nossa maior preocupação em relação ao aparecimento de uma nova pandemia. Hoje, temos muito mais recursos na medicina para lidar com uma situação dessas do que em 1918. Mas temos uma população muito maior, o mundo está muito mais conectado, viajamos mais e mais rápido e temos megacidades, onde um vírus desse tipo se transmite em velocidade alucinante”, afirma Sylvie Briand, diretora do Departamento de Ameaças Infecciosas da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Ela lembra que o causador da gripe espanhola foi o vírus da influenza A, ou H1N1, o mesmo que causou a pandemia de “gripe suína” de 2009, que matou mais de 18 mil pessoas. Na época, Sylvie era diretora do Programa Global de Influenza da OMS. Para ela, porém, a mortalidade sem precedentes da gripe espanhola dificilmente se repetirá, já que o contexto de 1918, com uma guerra mundial em curso, teve um papel crucial na gravidade da pandemia. Incessantes movimentações dos exércitos e as péssimas condições de higiene, nutrição e saúde – tanto nas trincheiras quanto nas cidades – aumentaram a abrangência do vírus.

“Além disso, não havia a capacidade de diagnósticos que temos hoje, não havia antibióticos e antivirais. Hoje, em tese, temos armas para evitar uma situação como aquela. O que não sabemos é até que ponto essas armas serão suficientes para proteger a todos, já que a população mundial cresceu muito em um século”, diz.

A pandemia de 2009 mostrou à OMS que as ações contra uma pandemia atualmente precisam ser extremamente coordenadas, envolvendo todos os países. “Estamos todos ligados. Se um vírus novo aparecer em um determinado país, ele chegará a todos os continentes em menos de nove semanas.”

Durante o surto de 2009, uma vacina chegou a ser produzida quando o vírus foi identificado, mas levou alguns meses para começar a ser distribuída. Depois disso, a OMS criou um plano de ação global para vacinas de influenza, que estabelece procedimentos para que os produtores de vacina respondem mais rapidamente a um risco de pandemia. “Aprendemos muito, mas não sabemos até que ponto conseguiremos reagir de forma rápida o suficiente quando surgir uma nova pandemia”, disse Sylvie.

Mutações. A capacidade do vírus da influenza de modificar constantemente suas características genéticas também contribui para dar a ele o título de principal ameaça, de acordo com Alexander Precioso, diretor do Laboratório Especial de Ensaios Clínicos e Farmacovigilância do Instituto Butantã.

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“Hoje, se pensarmos no risco de uma nova pandemia, certamente o vírus mais propenso para isso é o influenza, em especial o tipo A, que tem capacidade de sofrer mudanças estruturais no seu material genético, de se reorganizar e criar algo novo”, explica. “Essa é uma possibilidade eterna que faz com que o vírus tenha capacidade de se modificar contínua e rapidamente. Só isso já pode fazer surgir um influenza A totalmente novo para qualquer um de seus hospedeiros – aves, suínos e o ser humano –, o que vai sempre conferir um risco de pandemia”, afirma Precioso.

Segundo ele, quando se fala no risco de pandemias, é preciso considerar dois aspectos: um agente infeccioso novo, para o qual a população não tenha imunidade, e condições globais que possam favorecer ou não a ocorrência da pandemia. Em 1918 havia as duas coisas. O vírus era novo, com uma capacidade de disseminação muito elevada, e que encontrou uma população suscetível.

Para o pesquisador, o que muda hoje, em relação a 1918, é justamente a condição global. "Hoje em dia existem instrumentos para monitorar essa possibilidade de surgimento de novos vírus. É uma vigilância que vem melhorando nos últimos anos e certamente é muito melhor do que havia na época da gripe espanhola. Temos vacinas, que com certeza vão ser um instrumento para combater ou limitar uma eventual pandemia", afirmou o pesquisador.

Além disso, segundo Precioso, hoje há melhores condições de saneamento, habitação e alimentação. Ele não acredita, porém, que esteja descartado o risco de ocorrer algo como em 1918. O surto de 2009 mostrou que, apesar de haver um sistema melhor de vigilância, ele ainda é lento. Ele menciona o plano de ação global para vacinas de influenza, citado por Sylvie Briand, como um avanço. "Existem instrumentos para agilizar o processo, mas isso não fica disponível de um dia para o outro", ponderou Precioso.

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Busca por novos vírus. Os investimentos na descoberta de novos vírus são fundamentais para evitar que uma pandemia como a de 2018 se repita, defende o médico e biofísico Carlos Morel, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do Instituto Nacional de Inovação em Doenças Negligenciadas. 

No fim de fevereiro, Morel e colegas anunciaram na revista Science a criação de uma força-tarefa mundial para identificar novos vírus que poderão ameaçar a humanidade no futuro. Batizada de Projeto Viroma Global, a iniciativa será lançada no fim do ano. Segundo Morel, um dos principais alvos para a busca de novos vírus são locais populosos onde há um contato muito estreito entre pessoas e aves ou mamíferos, como os mercados da China.

“Para explicar de forma bem simples, podemos dizer que os vírus como os da gripe têm o genoma partido em pedacinhos. Se houver dois vírus diferentes circulando juntos, um deles em humanos e outro em suínos, por exemplo, é possível que esses pedacinhos se misturem, gerando um novo vírus”, explica Morel.

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De acordo com ele, os vírus da influenza não podem ser subestimados. Depois da epidemia de H1N1 em 2009, os cientistas voltaram a estudar a gripe espanhola, publicando grande número de estudos sobre o vírus. Em 2005, um grupo de pesquisadores já havia sequenciado o genoma do vírus de 1918, que fora extraído do cadáver de uma vítima da pandemia encontrado congelado no permafrost (solo congelado) do Alasca.

“Os vírus da gripe podem ser inofensivos ou mortais, porque seu genoma muda em velocidade alucinante – e os estudos sobre o vírus da gripe espanhola nos ensinaram que essa diferença na periculosidade dos vírus tem relação direta com a sua estrutura e com as mutações que ela sofre. Foi quando começamos a estudar a estrutura desses vírus que pudemos mapear o que lhe confere periculosidade. Isso é fundamental para desenvolvermos vacinas e terapias”, afirmou Morel. / COLABOROU GIOVANA GIRARDI

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Em SP, 1% morreu com a ‘hespanhola’No dia 22 de outubro de 1918, as primeiras mortes causadas pela gripe espanhola – ou simplesmente “a hespanhola”, como se dizia na época – foram anunciadas pelos jornais, entre eles o Estado, e o desespero rondou os moradores de São Paulo. Até o início do ano seguinte, a doença mataria mais de 5 mil pessoas – 1% da população da população paulistana, que na época tinha 528 mil habitantes, de acordo com a historiadora Liane Maria Bertucci, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Liane escreveu diversos artigos e também sua tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sobre a epidemia em São Paulo. Em sua pesquisa, acompanhou as discussões dos médicos sobre a pandemia a partir dos textos dos jornais de 1918. “A epidemia foi devastadora, mas a mobilização da sociedade, dos médicos, jornalistas e autoridades foi surpreendentemente bem organizada, levando-se em conta uma situação limite como aquela”, disse Liane ao Estado.

De acordo com ela, a gripe espanhola chegou em setembro ao Rio de Janeiro, e a população paulistana já aguardava, apreensiva, sua chegada. Médicos, políticos, a igreja, a Cruz Vermelha e até os escoteiros participaram de uma força-tarefa contra a gripe. “O Estadão publicava diariamente os relatos da Inspetoria de Higiene. Ainda assim, 120 mil pessoas adoeceram e cerca de 5 mil morreram.”

No Rio de Janeiro, na época a capital federal, com 914 mil habitantes, quase 600 mil adoeceram. Em poucos meses, 12,6 mil morreram. A vítima mais conhecida foi o então presidente eleito do Brasil, o paulistano Rodrigues Alves. Ele ficou doente no fim de 1918 e morreu em janeiro de 1919, antes de tomar posse. 

Em São Paulo, segundo Liane, as primeiras estatísticas sobre mortes começaram a ser divulgadas em novembro de 1918. As cifras eram até então inimagináveis: já havia quase 8 mil doentes e, apenas no dia 4 daquele mês, 171 mortos. . "As medidas implementadas sob o comando do Serviço Sanitário para o combate à epidemia eram cada vez mais questionadas, inclusive por muitos dos que colaboravam no atendimento aos gripados", disse Liane.

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Os jornais da época mostram que havia uma intensa discussão entre os médicos sobre a causa da epidemia. Debatia-se se era um bacilo ou um vírus. Os médicos receitavam repouso, pouca comida, purgantes – como sulfato de sódio ou magnésio – e sudoríficos, como tintura de acônito, acetato de amônio, infusão de jaborandi, xarope de conhaque e de tília. “Havia também recomendação de chás de canela, injeções de óleo canforado, éter ou estricnina, as então conhecidas poções de Rivière e de Todd, utilizadas para combater problemas pulmonares”, lembra a pesquisadora.

Origem. A pandemia de 1918 ficou conhecida como gripe espanhola, mas não surgiu naquele país. Durante a Primeira Guerra Mundial, os jornais dos países envolvidos censuravam as notícias sobre a pandemia, como recurso para não baixar o moral das tropas. A Espanha, neutra no conflito, gozava de relativa liberdade de imprensa e noticiava diariamente a devastação causada pela gripe. Assim, as populações de outros países acreditavam que o problema era exclusivamente espanhol. Quando as mortes começaram a se multiplicar aos milhares por todo o mundo, as pessoas começaram a se referir ao surto como “a gripe espanhola”. 

O primeiro caso registrado da doença ocorreu no quartel Fort Riley, no estado do Kansas, nos Estados Unidos. Na manhã do dia 11 de março de 1918, o recruta Albert Gitchell, cozinheiro do quartel, apresentou-se à enfermaria com o que parecia ser uma forte gripe.  Ele foi isolado, mas já havia servido a comida a inúmeros soldados. No início da tarde, já havia outros 100 soldados internados. Em cinco semanas já eram 1.127.

Ainda em março, já havia relatos de casos em todo o território americano. Em abril a doença chegou à França e logo se espalhou pela Europa ocidental. Em maio, todo o norte da África estava infectado. Em junho, a doença se espalhou pelo leste da Europa, pela Escandinávia, pela Rússia e chegou à China.

Em agosto tem início uma nova onda da doença, que chega à sua fase mais devastadora. Ela ressurge na França, depois nos outros países europeus e atinge pela primeira vez a África sub-sahariana. Em setembro, a segunda onda chega à América do Norte e, desta vez, também à América do Sul - incluindo o Brasil - e à Índia, onde causaria pelo menos 17 milhões de mortes.

Em janeiro de 1919, tem início uma terceira e última onda, mais amena nos países que já haviam sofrido com a doença. No mesmo mês, a doença chega pela primeira vez à Austrália, de forma virulenta.

Além do presidente eleito do Brasil, Rodrigues Alves, a doença causou a morte do cientista político alemão Max Weber, dos escritores franceses Guillaume Apolinnaire e Edmond Rostand e dos artistas austríacos Gustav Klimmt e Egon Schiele.

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