Hospital psiquiátrico do Juquery chegou a ter 15,6 mil internos

Ao mesmo tempo que era um polo científico e berço da arteterapia no Brasil, o hospital chegou a ter milhares de leitos separados por 20 centímetros de distância e foi usado como ferramenta política na ditadura militar

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Por Caio Nascimento
Atualização:

FRANCO DA ROCHA - Todos os 57 pacientes do Hospital Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, são fruto de uma época marcada por internações psiquiátricas de longa duração em locais isolados da sociedade. Até o fim dos anos 1970, dados do Juquery apontam que o complexo chegou a ter 15,6 mil internos. A partir de 1978, a criação de manicômios privados motivou a transferência de muitos para outras unidades, fazendo com que esse total caísse para 4,2 mil no fim da década de 1980.

Até o fim dos anos 1970, dados do Juquery apontam que o complexo chegou a ter 15,6 mil internos. Foto: Nilton Fukuda/Estadão

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Essa queda, porém, não representou evolução nos cuidados. Psiquiatra e membro da Academia de Medicina de Brasília, Augusto Cesar Costa explica que com a criação do Instituto Nacional de Assistência Médica de Previdência Social (Inamps), em 1977, os investimentos públicos passaram a priorizar os serviços psiquiátricos particulares.

Assim, os pacientes que não eram credenciados ao órgão por causa falta de registro na carteira de trabalho — em geral, pessoas pobres — não podiam desfrutar do benefício e ficavam relegados a hospitais públicos, onde o tratamentos era pior e mais suscetível a abusos.

"Os sem credenciamento no Inamps eram considerados indigentes e iam para a rede pública. Devido ao grande número de pacientes e a estagnação dos investimentos em novos hospitais psiquiátricos públicos, as equipes ficavam sobrecarregadas e era difícil dar atenção eficaz para todos", explica Costa. "Dessa forma, esses hospitais ficavam cada vez mais superlotados com pessoas que perambulavam sem perspectiva nenhuma de vida. Isso gerava tensões que se transformavam em situações de violência institucional e infrações de direitos humanos."

Isso gerava tensões que se transformavam em situações de violência institucional e infrações de direitos humanos

Augusto Cesar Costa, psiquiatra

Local foi usado para abrigar presos da ditadura

O hospital público chegou a ter milhares de leitos separados por 20 centímetros. Foto: Werther Santana/Estadão

No Juquery, não foi diferente. Ao mesmo tempo que era um polo científico e berço da arteterapia no Brasil — trabalho da Psicologia que busca conhecer o paciente por meio da arte —, o hospital público chegou a ter milhares de leitos separados por 20 centímetros de distância e foi usado como ferramenta política na ditadura militar.

O psiquiatra Antonio Carlos Cesarino, que integrou o Conselho Regional de Medicina durante o regime, revelou, em depoimento à Comissão da Verdade, casos ainda sem esclarecimentos.

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"Tinha a internação de pessoas cuja grande loucura era ser subversivo. A gente não sabe bem do que morreram e como foi."

Tinha a internação de pessoas cuja grande loucura era ser subversivo. A gente não sabe bem do que morreram e como foi

Antonio Carlos Cesarino, psiquiatra

No livro O Capa-Branca, Walter Farias, um ex-funcionário que se tornou paciente do hospital nos anos 1970, também relata abusos da mesma época.

"Os pacientes eram amarrados em camisas-de-força e submetidos a banhos gelados. Os tratamentos, que serviam apenas para coagir e torturar os pacientes, ainda incluíam injeções do parasita da malária, aplicação de altas doses de insulina para provocar o coma e a lobotomia, que retirava pedaços do cérebro", recorda.

Vale ressaltar que o odor de urina e fezes se alastrava pelo complexo até o fim da década de 1990, conforme lembra o próprio diretor da unidade, e era comum ouvir gritos de surtos psicóticos vindos das celas fortes — solitárias, como as de presídios, onde enfermos com quadros agudos ficavam, tendo só cama e latrina. Todas foram desativadas há pouco mais de 20 anos.

Os tratamentos, que serviam apenas para coagir e torturar os pacientes, ainda incluíam injeções do parasita da malária, aplicação de altas doses de insulina para provocar o coma e a lobotomia, que retirava pedaços do cérebro

Walter Farias, ex-funcionário e ex-paciente do Juquery

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Criação do SUS levou ao fim dos manicômios

Essa violência só passou a ser reduzida no Brasil com o a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, que permitiu a troca do modelo hospitalocêntrico por uma Rede de Atendimento Psicossocial (Raps) fora dos manicômios.

Além disso, o avanço da reforma psiquiátrica — que ganhou força na década de 1980 e virou lei federal em 2001 — também contribuiu para a desativação dos hospitais, ao exigir que os pacientes fossem transferidos para os serviços públicos comunitários de saúde mental. Do começo dos 1990 para o início dos anos 2000, o número de leitos caiu de 88 mil para 66 mil em todo o País - hoje são 14,5 mil.

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Quando a norma começou a vigorar, o Juquery tinha mil moradores. Em 2010, esse número caiu para 355 e, até setembro, 123 foram transferidos para outros equipamentos de saúde, 97 morreram, 32 receberam altas familiares, seis foram encaminhados para aparelhos de promoção social. 

Dos que sobraram, 57 permaneceram no hospital e 40 passaram a viver em residências terapêuticas (RTs) - lares municipais voltados para a reinserção cidadã de pacientes psiquiátricos de longa duração.

"Quando o paciente vai para a RT, deixa de ser visto como peso morto confinado num hospital, pois pode gerar renda com o auxílio que recebe. Pode comprar pão na padaria, roupas, se sustentar e até exercer atividade profissional que o ajude na reintegração social. Isso permite que ele recupere a autonomia", diz o psiquiatra e membro da Academia de Medicina de Brasília Augusto Cesar Costa.

José Luiz ficou no Juquery por mais de 30 anos. Foto: Werther Santana/Estadão

José Luiz, de 60 anos, é uma prova de que essa lógica pode dar certo. Ele ficou internado por quatro décadas no Juquery com esquizofrenia e, há quatro anos, foi enviado para uma residência terapêutica de Franco da Rocha. Recebe Bolsa Família e administra o dinheiro com a ajuda da equipe de saúde mental do município.

"Fui para o Juquery porque fiquei doente da cabeça. Hoje, me sinto melhor. Gosto de ficar na cama escutando meu radinho", diz ele, que toma remédio para controlar o transtorno mental.

Fui para o Juquery porque fiquei doente da cabeça. Hoje, me sinto melhor

José Luiz, ex-paciente do Juquery

As moradias servem para ajudar na reinserção social do paciente. Foto: Werther Santana/Estadão

Paulo Mineiro, de 63 anos, ficou internado no Juquery por 37 anos e está há dois na residência terapêutica de Franco da Rocha. Sem noção do tempo e com esquizofrenia, ele acredita que tenha ficado apenas quatro anos no complexo hospitalar e não recebe visita dos parentes, embora a equipe psicossocial tenha rastreado a existência de uma irmã. Hoje em liberdade, caminha pelo bairro e interage com vizinhos, funcionários e outros moradores. É considerado sorridente e carinhoso.

*ESTAGIÁRIO SOB A SUPERVISÃO DE CHARLISE MORAIS

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