Internação longa em hospitais psiquiátricos cria ‘lógica de cadeia’

Juízes têm mantido pacientes em unidades após alta médica; contrariando o que prevê a lei antimanicomial, de 2001

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Por Luiz Fernando Toledo e Fabiana Cambricoli
Atualização:
Jaú. Dentro de hospital, pacientes criam regras hierárquicas e vendem maços de cigarros, que chegam ao local levados por visitantes Foto: Tuca Melges/Estadão

A permanência de pacientes usuários de drogas ou com outros transtornos psiquiátricos por tempo indeterminado nos hospitais, mesmo após a alta médica, criou nas unidades de saúde uma lógica semelhante à das cadeias. Há regras paralelas, castigos físicos, violência sexual e até tráfico de drogas. 

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Reportagem do Estado mostrou no domingo que juízes de todo o País têm autorizado internações psiquiátricas prolongadas mesmo após o médico ter determinado a saída do paciente, desrespeitando o que prevê a lei antimanicomial, de 2001. 

A Associação Hospitalar Thereza Perlatti, em Jaú, no interior de São Paulo, tem 23 pacientes com alta médica que seguem internados por determinação da Justiça. Lá, os pacientes estabeleceram uma hierarquia semelhante à das prisões, sendo os internos mais antigos os líderes. O paciente Carlos (nome fictício), de 32 anos, está há mais de um ano internado e conta que já ocupou a função de “disciplina”, responsável por zelar pelo “respeito” aos funcionários do hospital.

Embora o cigarro seja proibido, há uma espécie de tráfico entre os pacientes, que os conseguem por meio de visitantes. “Uns ajudam a esconder. Outros arrumam o isqueiro”, explica. E quem desrespeita as regras da casa é castigado por outros pacientes. “Jogam um lençol em cima e todo mundo bate”, conta Carlos, que diz haver ambiente específico para isso: a sala de TV.

“Eles tentam resolver as coisas aqui dentro como resolveriam na rua. E é esse tipo de comportamento inadequado que, fora daqui, pode levar a uma recaída no futuro”, diz a psicóloga do hospital, Sany Devides.

No Espírito Santo, a Defensoria Pública já atendeu a um caso de estupro em uma das clínicas para tratamento de dependentes químicos. A defensora Geana Cruz de Assis, da área de Proteção à Pessoa com Transtorno Mental, conta que uma mãe a procurou, no fim de 2015, para transferir o filho que havia sido estuprado por outro paciente, portador do vírus da aids. Mas o hospital não investigou o caso.

“Por coincidência, outra mãe me procurou para falar da internação do filho. Peguei o processo e havia notícia da clínica de que ele havia sido desligado do tratamento porque não se adequou e por ter cometido assédio sexual”, disse. A vítima foi transferida para outra unidade após decisão judicial.

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Geana também relata denúncia de pais sobre outra clínica, que proibia a entrada de parentes. “Hospital não é prisão nem manicômio. Como há pessoas internadas há muito tempo, criou-se outra cultura, que não a de tratamento, mas sim da restrição de direitos.” O órgão não informou os nomes dos hospitais onde houve as denúncias. 

Tráfico. No hospital psiquiátrico Severino Lopes, em Natal, houve até tráfico de drogas entre pacientes. Geralmente, os que são liberados para passar o fim de semana com a família voltam com droga e repassam aos colegas. “Isso acontece apesar de contratarmos vigilantes e fazermos uma revista minuciosa. Ainda não se tornou um problema incontornável, mas é grave”, diz Jair Farias de Oliveira, diretor técnico da unidade.

Outro problema é que pacientes que cometeram crimes são encaminhados à unidade e misturados aos pacientes comuns, alguns em surto psicótico. “Como são medidas judiciais, tenho de obedecer, embora não concorde. Tentamos ter cuidado para que essa pessoa evite conflito com outros pacientes.” Ainda está em construção unidade voltada para dependentes químicos. 

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