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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Liberdade ou autonomia?

A construção de relacionamentos passa por algum grau de renúncia à liberdade absoluta

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Você já deve ter passado por alguma coisa semelhante. Em determinado momento resolve fazer algo espontaneamente para ajudar seu parceiro ou parceira. Uma daquelas tarefas cotidianas que não têem um responsável fixo – talvez trocar o lixo ou guardar a louça. Sem dono preestabelecido, é ao mesmo tempo obrigação – porque alguém tem de fazer –, mas também um favor, já que não estava explícito que era você.

Eis que no momento em que se levanta o outro diz: “Você bem que poderia trocar o lixo para a gente hoje”, naquele tom que mistura iguais proporções de doce e amargo, como se fosse uma ordem em forma de súplica, ou vice-versa. Na mesma hora um sentimento estranho te invade. A presença da súplica lhe rouba a proatividade – você já não está mais fazendo algo espontaneamente, mas em seguida a um pedido – enquanto o tom de comando lhe retira a liberdade. Não parece mais que está agindo porque quer, mas porque alguém mandou.

A privação da liberdade pode ser estressante. Mas há limites Foto: Noah Silliman/Unsplash.com

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“Eu já ia fazer” – costuma-se dizer então, numa tentativa algo patética de resgatar a autonomia e assim aliviar a reatância psicológica, nome técnico dessa reação negativa que nós temos, gerando resistência a assumir determinados comportamentos quando sentimos que ele nos está sendo imposto contra ou a despeito da nossa vontade. Isso mostra o quanto a privação de liberdade pode ser estressante. Mesmo em pequenas e insignificantes doses, a redução da nossa autonomia gera um desconforto contra o qual somos impelidos a reagir.

Esse é um dos motivos pelo qual defender a liberdade se tornou o fetiche da vez. Com uma manipulação adequada na forma de apresentar situações vêm-se convencendo as pessoas de que sua liberdade está ameaçada, exatamente para apertar a tecla da reatância. E como quanto maior o estímulo para uma reação emocional menor é o espaço para a análise racional, estimular as emoções o máximo possível tornou-se a ferramenta de trabalho de muita gente.

Só que não existe plena liberdade na vida em sociedade. A construção de relacionamentos, seja entre duas pessoas num casal, seja entre milhões num país, passa por algum grau de renúncia à liberdade absoluta – se todos fizerem o que querem, ignorando os outros, não construímos nada além do caos. 

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Isso não significa abrir mão da nossa autonomia. Quando compreendemos que as coisas são lei porque estão certas, e não que são certas porque estão na lei, não só alcançamos o grau mais alto de liberdade ao renunciar autonomamente a desejos, como compreendemos que ao longo da história quebrar as leis foi a coisa certa a fazer. Mas isso é uma conversa de gente grande; impossível construir esse diálogo enquanto o debate público estiver na mão de crianças birrentas.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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