Mais de mil pessoas já morreram no mundo envenenadas por dietilenoglicol

Substância virou remédio antibacteriano em forma de xarope, em 1937, nos Estados Unidos, e matou dezenas de pessoas; nesta segunda-feira, polícia de Minas informou quinta suspeita de morte relacionada a cerveja

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Por Roberta Jansen
Atualização:

RIO - A morte na madrugada desta segunda-feira, 3, de um homem de 74 anos que estava internado com suspeita de contaminação por dietilenoglicol no Hospital Madre Tereza, na região oeste de Belo Horizonte, volta a levantar a discussão sobre o uso dessa substância, que já foi insumo da indústria farmacêutica na produção de remédios. 

A ideia simples parecia genial: criar um remédio antibacteriano em forma de xarope para facilitar a ingestão por crianças. Para isso, o farmacêutico responsável de um laboratório americano juntou o princípio ativo do medicamento a um solvente e a um aromatizante de framboesa. Estava criado o Elixir Sulfanilamide.

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O novo produto começou a ser comercializado em setembro de 1937 nos Estados Unidos. Menos de um mês depois, a Associação Médica Americana já tinha recebido dezenas de notificações de mortes relacionadas ao xarope. Uma investigação nacional foi deflagrada e, rapidamente, revelou os motivos da tragédia. O solvente usado no xarope era extremamente tóxico para seres humanos - o que não se sabia até então.

Como não havia uma legislação que regulasse a fabricação dos remédios, não foram feitos testes toxicológicos antes de o medicamento ser lançado no mercado. Pelo menos cem pessoas morreram em todo o país, a maioria crianças. O químico responsável pela criação do elixir, Harold Watkins, foi formalmente acusado pelas mortes e acabou cometendo suicídio.

A revolta da população fez o Congresso aprovar, já no ano seguinte, a Lei Federal de Drogas, Alimentos e Cosméticos que acabou levando à criação da Administração de Drogas e Alimentos (a FDA). Desde então, testes toxicológicos em animais são obrigatórios para a comercialização de novos medicamentos.

O nome do solvente extremamente tóxico responsável pela tragédia: dietilenoglicol ou DEG. Trata-se da mesma substância encontrada na cerveja Backer, em Minas Gerais.

Instalações da cervejaria Backer, em Belo Horizonte. Empresa é investigada por morte suspeita e internação de pessoas que teriam consumido a cerveja Belorizontina Foto: Leonardo Augusto/Estadão

Embora a toxicidade do dietilenoglicol tenha sido estabelecida em 1937, nada menos que outras 12 epidemias de envenenamento pela substância foram registradas em várias partes do mundo desde então, a grande maioria de responsabilidade da indústria farmacêutica. Pelo menos mil pessoas morreram.

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Um dos episódios mais graves ocorreu entre 1990 e 1992 em Bangladesh, onde cerca de 400 crianças morreram por falência renal depois de terem recebido um xarope de paracetamol contaminado com dietilenoglicol. Em 1995, no Haiti, dois xaropes de produção local, igualmente contaminados, mataram outras cem crianças. Mais recentemente, em 2006, no Panamá, foram 219 vítimas, mais uma vez por conta de um xarope.

“Normalmente, o solvente que se usa em xaropes é a glicerina, que não é tóxica”, explicou David Tabak, vice-presidente do Conselho Estadual de Química, que, durante 14 anos, trabalhou na indústria farmacêutica. “Mas já teve gente que usou o dietilenoglicol para aumentar a solubilidade e baratear o produto, achando que, em pequenas quantidades, poderia não fazer mal.”

A contaminação de bebidas, como a registrada no Brasil, no entanto, não é inédita. Em 1985, descobriu-se que vinhos austríacos estavam repletos de DEG. Milhares de garrafas foram recolhidas e não houve registro de morte.

“O DEG é altamente tóxico, mas isso já está bem determinado desde 1937”, afirma André Pimentel, do Departamento de Química da PUC-RJ e do Conselho Estadual de Química. “A intoxicação de pessoas geralmente acontece por acidente, vazamento ou contaminação.”

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Pimentel explicou que a substância é comumente usada na indústria como anticongelante (permite o resfriamento de líquidos abaixo de zero grau sem o congelamento) e também como solvente.

“A toxicidade vem da ingestão oral; pela pele, a absorção é muito baixa”, explica. “Mas quando entra no sistema gastrointestinal é rapidamente distribuída pela corrente sanguínea e alcança o fígado e, posteriormente, os rins.”

Existem drogas capazes de reverter a intoxicação, mas seu uso depende de um diagnóstico rápido do problema, o que nem sempre é possível. Os primeiros sintomas são de enjôo, vômito e mal estar; comuns a muitas doenças.

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O caso da cervejaria Backer foi o primeiro de envenenamento por DEG registrado no Brasil.

“De fato, pelo menos nos últimos 20 anos, não conseguimos identificar nenhuma contaminação de alimentos por dietilenoglicol no país”, confirma a gerente geral de alimentos da Anvisa, Talitha Lima. “É um caso inédito nessa área de alimentos.”

Os casos mais ruidosos de contaminação de alimentos no Brasil aconteceram na última década com uma bebida de soja e um achocolatado comercializados, acidentalmente, com soda cáustica - produto usado na limpeza dos equipamentos industriais.

“Tanto no caso da cerveja quanto no caso da bebida de soja e do achocolatado houve falha no processamento dos produtos; aquelas substâncias não poderiam estar presentes em nenhuma hipótese nas bebidas”, diz Lima, explicando por que não há regulamentação oficial para uso da DEG ou da soda cáustica pela Anvisa. “Se fosse assim, teríamos que ter legislação para toda e qualquer substância existente e isso não é possível.”

Tradicionalmente, a Anvisa, assim como a FDA, regula como possíveis contaminantes aditivos alimentares e coadjuvantes (caso do agrotóxico, por exemplo, para o qual há um limite de segurança) ou de substâncias que não são adicionadas intencionalmente, mas ocorrem mesmo com o uso das melhores práticas agrícolas e de fabricação (por exemplo, um fungo que costuma surgir no amendoim).

A saída, diz, é aumentar a segurança dos processos industriais.  “Em toda a indústria, quando uma substância tóxica é usada num processo produtivo, o cuidado deve ser redobrado, com monitoramento rotineiro, pontos críticos de controle, proteção adequada de quem manipula o produto”, diz.