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Memória: dizer que tecnologias causarão ‘demência digital’ é exagero, diz neurocientista

Sam Gilbert é autor sênior de estudo que indica que quando usamos um dispositivo externo para lembrar-nos de uma tarefa futura, seguimos utilizando a memória interna, mas para armazenar outras informações

Foto do author Leon Ferrari
Por Leon Ferrari
Atualização:

Alguns neurocientistas temem prejuízos à memória de tecnologias como smartphones, usando termos como amnésia digital ou demência digital. Sam Gilbert considera isso um “exagero”. Na visão dele, é preciso assumir que os efeitos a longo prazo das tecnologias são “muito difíceis” de estabelecer e que, por ora, não há evidências de que elas “estejam realmente prejudicando nossas habilidades de memória”.

Neurocientista diz que não há evidências de quetecnologias 'estejam realmente prejudicando nossas habilidades de memória' Foto: Aly Song/Reuters - 23/07/2015

Líder do grupo de Metacognição e Funções Executivas e professor da University College London (UCL), Gilbert é autor sênior de estudo que indica que, quando usamos um dispositivo externo para lembrar de uma tarefa futura, seguimos utilizando a memória interna, mas para recordarmos de outras coisas. “Apenas priorizamos informações diferentes para armazenar”, explica em entrevista por chamada de vídeo ao Estadão.

Sam Gilbert destaca que pessoas não devemse alarmar com o uso da tecnologia, mas pensar na melhor forma de usá-la Foto: Divulgação

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O especialista, porém, afirma que isso não significa que o uso de tecnologias seja isento de riscos e prejuízos. “Há questões mais amplas sobre os possíveis danos do uso excessivo da tecnologia que não abordamos”, diz. “Nosso estudo foi principalmente focado na questão da memória e, nesse domínio, acho que as pessoas não devem temer esses dispositivos.”

Leia a entrevista:

Existe algum risco envolvido em usar esses dispositivos de memória externa, como smartphones, por exemplo? Há prejuízo na habilidade de memória?

Existem dois tipos diferentes de risco que devemos pensar. O primeiro risco é que, se você armazenar suas informações importantes em um dispositivo e ele falhar, por exemplo, você perder essas informações. Portanto, é certamente verdade que, se seu dispositivo falhar, você provavelmente não se lembrará das informações armazenadas. Esse é um risco potencial e é por isso que é importante sempre fazer backup de informações úteis e tomar medidas para evitar esses problemas. No entanto, acho que o benefício de usar esses dispositivos provavelmente supera esse risco. O segundo tipo de risco que pode ser considerado é se o uso desses dispositivos pode prejudicar nossa capacidade de lembrar. Não há evidências claras de que tal efeito ocorra. E, pessoalmente, não acho que as pessoas devam se preocupar com isso, porque, como mostramos em nossos experimentos, quando as pessoas armazenam informações em um dispositivo, ainda continuam usando sua própria memória. Elas apenas priorizam informações diferentes para armazenar. Portanto, não há razão para pensar que perderemos a capacidade de lembrar.

Então não há evidência científica de que a memória pode ser prejudicada?

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Quando se trata de memória, não conheço nenhuma evidência que mostre um efeito nocivo de smartphones ou outros dispositivos. Pode haver outros aspectos em que o uso de um dispositivo externo possa prejudicar nossa capacidade. Um exemplo pode ser a navegação. Há algumas evidências de que, se as pessoas aprenderem uma rota seguindo um dispositivo GPS, aprenderão essa rota menos bem do que se navegassem sozinhas. Portanto, é possível que certas habilidades sejam levemente prejudicadas pelo uso desses dispositivos. Mas precisamos balancear isso com o benefício de usar esses dispositivos e, se nos abstermos de usá-los, podemos acabar prejudicados, porque, em geral, são muito eficazes.

O senhor considera que o uso de smartphones, por outro lado, pode ajudar na memória?

Pode melhorar a memória no sentido de que, ao armazenar algumas informações em um dispositivo externo, isso dá às pessoas a capacidade de lembrar informações adicionais com sua própria memória, o que, de outra forma, não seriam capazes de fazer. Essa é uma maneira que o uso desses dispositivos pode melhorar a memória.

Alguns neurocientistas já declararam temer o impacto de novas tecnologias na habilidade de lembrar. Falaram até em um possível efeito de “demência digital” ou "amnésia digital”. Por quê?

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Muitos dos medos de que as pessoas falam agora sobre demência digital ou amnésia digital podem se aplicar tanto a tecnologias mais antigas, como caneta e papel, quanto a smartphones. Na minha opinião, os medos sobre a tecnologia que são expressos com uma frase como demência digital são exagerados. A outra coisa que eu acrescentaria é que os medos sobre a tecnologia são quase tão antigos quanto as próprias tecnologias. Então, há mais de 2 mil anos, o filósofo Sócrates alertou que, se você escrever as coisas, isso poderia tornar as pessoas esquecidas e, agora, ouvimos essas mesmas preocupações sobre smartphones. Não há evidências de que dispositivos desse tipo estejam realmente prejudicando nossas habilidades de memória.

Então, como o senhor acha que neurocientistas deveriam falar sobre a relação entre dispositivos externos de armazenamento, como smartphones, e a memória?

Acho muito importante reconhecer que os efeitos de longo prazo da tecnologia são muito difíceis de estabelecer. Algumas pessoas afirmam com confiança que a tecnologia está prejudicando nossas habilidades, mas é muito difícil estabelecer isso. Porque para realmente saber qual seria o impacto, você precisaria pegar um grupo de pessoas e permitir que usassem a tecnologia, e outro grupo de pessoas e não permitir que usassem a tecnologia, e anos ou décadas depois, testar suas habilidades. Isso não é um experimento que podemos realmente fazer como resultado disso, ninguém sabe realmente quais seriam os impactos a longo prazo. Em termos de como os neurocientistas devem conversar com leigos, acho que o importante é reconhecer as limitações de nossos métodos e tentar ser equilibrado, ao falar não apenas nos danos potenciais da tecnologia, mas também nos benefícios. Infelizmente, as pessoas tendem a falar com muita confiança sobre um lado ou outro. As pessoas não devem se alarmar com o uso da tecnologia, devemos pensar na melhor forma de usar a tecnologia para capacitar as pessoas e melhorar vidas. Devemos tentar não assustar as pessoas quando os medos não são justificados.

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Como as pessoas podem usar essas ferramentas de armazenamento melhor?

Uma coisa que é importante lembrar é que as pessoas tendem a usar dispositivos de memória quando pensam que vão esquecer algo, mas isso não é mesmo do que esquecer-se de fato. Portanto, uma das melhores maneiras de usar de forma otimizada os dispositivos, é aprender os pontos fortes e as limitações de nossa própria memória. Quanto melhor você entender e tiver insights sobre suas próprias habilidades de memória, melhor poderá usar a tecnologia. Acho que uma maneira de fazer isso é simplesmente monitorar a nós mesmos para reconhecer quando esquecemos, o que pode ter sido incomum nessa situação, e aprender o que aumenta a probabilidade de você esquecer e as circunstâncias em que está mais propenso a lembrar-se.

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Pessoas com Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), por exemplo, têm problemas com memória prospectiva (lembrar de intenções futuras). Elas podem se beneficiar mais desses dispositivos externos de armazenamento?

Não temos muitos dados sobre essa questão. De forma anedótica, às vezes, é dito que pessoas com condições de desenvolvimento neurológico, como TDAH ou autismo, podem se beneficiar do uso de ferramentas externas, que podem ser usadas para estruturar a vida e apoiar habilidades como memória prospectiva. No entanto, a pesquisa direta sobre o uso desses dispositivos, pelo menos usando os tipos de tarefas de laboratório que investiguei, ainda não foi realizada, é muito cedo para dar qualquer declaração de confiança, mas, em minha opinião, esses dispositivos podem ser muito úteis em populações que, de outra forma, podem achar difícil lembrar intenções.

O que se sabe sobre a influência de ser parte de minorias sexuais e raciais, além de condições socioeconômicas, na habilidade de lembrar-se?

Relativamente pouco se sabe sobre isso no momento. Uma das razões pelas quais sabemos relativamente pouco é porque a maioria das pesquisas de laboratório tende a ser conduzida em um grupo bastante incomum de participantes. Em sua maioria, são jovens estudantes universitários. Em média, tendem a ser mais bem educados, a vir de origens socioeconômicas relativamente mais altas, e diferem da população geral de outras maneiras também, por exemplo, são mais propensos a viver em cidades. Então esses fatores não são tão bem compreendidos quanto poderiam ser. Outra questão que acho relevante para essas questões sobre tecnologia e memória é em termos de acesso à tecnologia. Eu acho que há duas maneiras de pensar sobre isso. Por um lado, você pode pensar que o uso mais difundido da tecnologia de memória pode ajudar a reduzir as desigualdades, porque pode permitir que pessoas de todas as origens façam uso de ferramentas compensatórias e obtenham melhor desempenho. Por outro lado, você pode se preocupar que, como o acesso à tecnologia é distribuído de forma desigual, essas tecnologias podem até ampliar as desigualdades e não reduzi-las.

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