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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Mensagem para o passado

Quando conseguimos interpretar o então à luz do agora, podemos dar outro sentido à experiência

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O tema das viagens no tempo sempre me fascinou. Lembro até hoje do dia em que assisti a De Volta Para o Futuro: na saída do filme fiquei conversando com meu pai naquele imenso saguão do antigo Cine Paramount, tentando aflitivamente compreender os paradoxos que surgiam no filme.

Reviver esse momento também é, de alguma forma, viajar no tempo. Resgatar cores, sons, sentimentos, me transporta para aquele dia como se eu fosse um espectador, observando a cena escondido. A diferença de uma viagem no tempo verdadeira é que não posso interferir nela, não consigo mandar uma mensagem para mim mesmo.

Ou será que consigo?

Reviver o passado é uma forma de viajar no tempo, embora diferente da retratada em 'De Volta Para o Futuro' Foto: Universal

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Tenho pensado nisso ultimamente. É possível mandar um recado para nosso eu do futuro, e frequentemente peço a meus pacientes com dificuldade de seguir tratamento que façam isso. Quando me procuram em crise estão motivados e fazem tudo certo – remédios, terapia, atividade física. Mas basta se sentirem bem que abandonam tudo, com grande risco de recaídas. “Escreva uma carta para seu eu do futuro”, recomendo então. 

“Caro fulano, quem escreve é você no passado. A essa altura você deve estar se sentindo bem e já quer abandonar o tratamento. Não faça isso! Venho aqui te lembrar de como você ficou mal; não se engane apenas por já estar bem agora. Nós já passamos por isso antes; por favor, me dê ouvidos.” Às vezes funciona.

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Pois eu tenho achado que é possível mandar um recado para o eu do passado. Não de maneira mística ou esotérica. Mas na forma como vivenciamos nossa história.

Quando passamos algo ruim, temos dois sofrimentos: o imediato e a lembrança daquela dor. Recordar uma perda, uma ferida, uma dor, traz de volta o sentimento, por vezes misturando tristeza, raiva, mágoa, arrependimento. Nosso passado molda nosso presente. Mas quando conseguimos olhar para trás por novos ângulos, quando é possível reinterpretar o então à luz do agora, eventualmente conseguimos dar outro sentido para as experiências. 

A perda pode ter levado a um aprendizado; a dor, ao crescimento; a ferida, ao fortalecimento. Assim, ao voltarmos lá em nossa memória somos capazes de dizer para nós mesmos coisas como “Força, você consegue. Isso será importante no futuro. Essa dor não é para sempre”, e assim por diante.

O eu pretérito não conseguirá ouvir a mensagem vinda do futuro. Mas mesmo que a intensidade da dor naquele instante congelado no tempo não possa ser amenizada, o sofrimento que imaginávamos que nos acompanharia para sempre é estancado. As lembranças da experiência já não serão as mesmas e a dor será menor dali para frente. Então sim, é possível viajar no tempo. É o que fazemos quando quebramos as leis da física e colocamos nosso presente para moldar o passado.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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