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Na guerra total contra a obesidade, Chile mata o tigre do Sucrilhos

País lançou uma série de restrições de marketing e impôs reformulações de embalagens e rótulos de alimentos não saudáveis

Por Andrew Jacobs
Atualização:

SANTIAGO - Eles mataram o Tigre Tony. E aniquilaram o Chester Cheetah dos salgadinhos Cheetos. E baniram os ovinhos surpresa Kinder.

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Quiosques no centro de Santiago vendem produtos com avisos nutricionais sobre itens com alto teor de açúcar, sal, calorias ou gorduras saturadas Foto: Victor Ruiz Caballero/The New York Times

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O governo chileno, diante das taxas de obesidade que dispararam, lançou uma guerra contra alimentos não saudáveis com uma série de restrições de marketing, baixou regras obrigatórias determinando reformulações de embalagens e rótulos, com o objetivo de mudar os hábitos de consumo de 18 milhões de pessoas.

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Nutricionistas afirmam que estas medidas são as mais ambiciosas até hoje no mundo para mudar a cultura alimentar de um país e podem ser modelo para se mudar o rumo de uma epidemia global de obesidade que, segundo pesquisadores, contribui para a morte de 4 milhões de pessoas por ano.

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"É difícil exagerar a importância dessas medidas - ou quão difícil tem sido a sua implementação, diante das costumeiras pressões", afirmou Stephen Simpson, diretor do Charles Perkins Centre, organização focada em política e ciência da nutrição e obesidade. Os setores bilionários de refrigerantes e alimentos pressionaram para ficarem livres de regulamentos em muitos países. 

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Desde que a lei foi sancionada há dois anos, ela obrigou multinacionais como a Kellog a remover os icônicos personagens animados das suas embalagens de cereais adoçados e proibiu a venda de doces, como os ovos de chocolate Kinder, que no seu interior sempre traz alguma quinquilharia para atrair as crianças.

A lei proíbe a venda de "junk food", como sorvete, chocolate e batata chips nas escolas e esses produtos não podem ser anunciados durante programas de TV ou websites direcionados para crianças.

No início do próximo ano, esses anúncios serão excluídos totalmente da TV, rádio e cinemas entre as 6 horas da manhã e 22 horas. Para incentivar a amamentação natural, será proibido o marketing de leites em pó para bebês.

Está ansioso por uma Coca-Cola? No Chile, bebidas com alta porcentagem de açúcar têm um imposto de 18%, um dos mais altos do mundo cobrados sobre refrigerantes.

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A chave da iniciativa é um novo sistema de rotulagem que exige que empresas de alimentos embalados exibam permanentemente logos em preto com um alerta na forma de um sinal de parada no caso de produtos com altas taxas de açúcar, sal, calorias, ou gordura saturada.

O setor de alimentação qualificou de exageradas as regras.

Felipe Lira, diretor da Chilealmentos, que representa o setor, afirmou em um comunicado que os novos rótulos são confusos e invasivos e que as restrições de marketing foram baseadas em uma correlação cientificamente falha entre a promoção de alimentos não saudáveis e obesidade. "Acreditamos que a melhor maneira de enfrentar o problema é por meio da educação do consumo que mude os hábitos das pessoas."

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A PepsiCo, que fabrica o Cheetos, e a Kellogs, produtora do Frosted Flakes, recorreram à Justiça, alegando que os novos regulamentos infringem sua propriedade intelectual. A ação está pendente de decisão.

María José Echeverria, porta-voz da PepsiCo, disse que a empresa cumpre plenamente a lei e não tem nenhum interesse em derrubá-la, mas está apenas tentando proteger seu direito de usar uma marca registrada.

Os índices de obesidade crescentes vêm obrigando os governos em todo o mundo a fazer frente a uma das mais graves ameaças à saúde pública em uma geração.

Até o final dos anos 1980, a má nutrição era generalizada entre os chilenos pobres, especialmente as crianças. Hoje, três quartos dos adultos estão com sobrepeso ou obesos, de acordo com o Ministério da Saúde. As autoridades estão particularmente alarmadas com o número de crianças obesas, um dos mais altos do mundo.

Em 2016, os custos da saúde com problemas de obesidade chegaram a US$ 800 milhões, ou 2,4% de todos os gastos com a saúde no geral, um porcentual que segundo analistas deve chegar a 4% em 2030. 

Estes dados contribuíram para reunir uma coalizão de autoridades eleitas, cientistas e grupos de defesa da saúde pública que venceu a oposição feroz das companhias de alimentação e seus aliados dentro do governo.

"Foi uma guerra de guerrilha", disse Guido Girard, vice-presidente do Senado chileno e médico, que propôs pela primeira vez essa regulamentação em 2007. "As pessoas têm o direito de saber o que essas companhias estão colocando nesses produtos e, com esta legislação, acho que o Chile deu uma enorme contribuição para a humanidade."

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Prateleira de supermercados em Santiago. Cada uma das etiquetas de nutrição preta indica que um produto é alto em uma das quatro categorias: sal, açúcar, calorias e gordura Foto: Victor Ruiz Caballero/The New York Times

Veneno do nosso tempo

Da Índia à Colômbia e Estados Unidos, países ricos e pobres vêm lutando para combater a crescente obesidade - e deparando com uma forte resistência das empresas do setor alimentício ansiosas para proteger seus lucros.

No Chile, interesses corporativos retardaram a aprovação da lei por quase uma década e em duas ocasiões eram tantos os lobistas presentes nas sessões do Congresso durante a discussão da lei que o presidente do Senado foi obrigado a suspender os debates para esvaziar a sala.

Mas a indústria raramente depara com oponentes como Guido Girardi. Cirurgião experiente, com talento teatral, ele é uma figura chave na coalizão de governo da presidente Michelle Bachelet. Durante a longa disputa sobre essa regulamentação, Girardi, de 56 anos, publicamente chamou as empresas do setor de alimentação de "pedófilas do século 21", e antes de Bachelet assumir o governo passou semanas protestando diante do palácio presidencial com cartazes acusando o predecessor da presidente, Sebastián Piñera, de destruir a saúde da nação ao vetar uma versão anterior da lei.

Outros dois fatores tornaram a nova lei possível, incluindo uma legislatura determinada a resolver os crescentes custos econômicos causados pela obesidade e o apoio de Michelle Bachelet, socialista que também é médica pediatra.

Mas, no final, a pressão da indústria conseguiu flexibilizar algumas medidas contempladas na lei original, incluindo um abrandamento das restrições de publicidade e eliminando uma proposta proibição de vendas de alimentos nocivos nas escolas.

As taxas de obesidade no Chile ainda precisam diminuir e segundo especialistas levará anos até se verificar uma mudança significativa da maneira como as pessoas se alimentam. Mas ao fixar normas no campo das embalagens e da publicidade de alimentos que atraem as crianças o governo espera conseguir reprogramar a próxima geração de consumidores.

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As novas normas, contudo, levaram a um resultado positivo inesperado: as empresas estão, voluntariamente, mudando seus produtos para evitar logos em suas embalagens que possam assustar.

De acordo com a associação do setor alimentício AB Chile, mais de 1.500 produtos, ou 20% de todos vendidos no Chile, foram reformulados em resposta à nova lei. A Nestlé reduziu o açúcar do seu achocolatado Milo. McDonald's está oferecendo purê de frutas, iogurte e tomates cereja em seus Happy Meals e empresas locais lançaram produtos como nozes, biscoitos de arroz e frutas secas para serem vendidos nas escolas.

No mês passado a Coca-Cola iniciou uma campanha publicitária de uma nova versão dos refrigerantes Sprite e Fanta - avisando que as bebidas não contêm rótulos de alerta porque a empresa substituiu metade do açúcar por adoçantes artificiais.

Um porta-voz da PepsiCo disse que dois terços de suas marcas de bebidas no Chile agora têm baixo teor ou não contêm açúcar e mais de 90% dos salgadinhos têm baixa concentração de sódio e gordura saturada.

A nova lei diz que sorvete, chocolate e batatas fritas não podem ser anunciados durante programas de televisão ou em sites voltados para o público infanto-juvenil Foto: Victor Ruiz Caballero/The New York Times

'Lutamos e lutamos'

O doutor Jaime Burrows Oyarzún, vice-ministro da saúde pública, está confiante de que o governo sairá vitorioso nos tribunais. Como principal defensor das novas regras, ele com frequência arca com a ira da indústria. Depois de banir o Kinder Surprise, um executivo da companhia da Itália e o embaixador italiano no Chile o acusaram de "terrorismo" durante uma visita ao seu gabinete.

Mauro Russo, diretor gerente da Ferrero, que produz os ovinhos Kinder, disse que a lei tem sido erroneamente aplicada ao seu produto porque o brinquedo é uma parte intrínseca da surpresa, não "um gadget promocional" para aumentar as vendas, como descrito pela lei. Ele também contestou a ideia de que o produto não é saudável, observando que o ovo contém 110 calorias e poucos consumidores compram mais de um ou dois por ano. "O impacto sobre a obesidade é muito marginal", disse ele.

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Muitos ativistas na área de nutrição se perguntam por quanto tempo a lei sobreviverá. Piñera, o ex-presidente, foi eleito novamente e deve suceder Bachelet em maio. Ele é um empresário conservador e vetou o projeto de lei em 2011, durante seu primeiro mandato. Seu governo apoiou uma iniciativa financiada por multinacionais que enfatizava receitas saudáveis, exercício e moderação quando se referia a alimentos considerados junk food. A campanha foi um projeto da primeira dama, Cecilia Morel Montes. "Não precisamos de mais impostos", disse ela em uma entrevista.

O porta-voz de Piñera afirmou que, depois de assumir o governo,ele provavelmente reexaminará a lei para ver como "aprimorá-la". /TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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