PUBLICIDADE

Não é hora de tirar máscara em ambiente fechado, diz Margareth Dalcolmo

Especialista da Fiocruz é um dos principais nomes no combate à pandemia no País. Ela vê ‘afã precipitado’ diante do recrudescimento da doença no exterior e comenta sobre o futuro da covid-19 no mundo

Foto do author Roberta Jansen
Por Roberta Jansen
Atualização:

Um dos principais nomes da linha de frente da luta contra a pandemia da covid-19 no Brasil, a pneumologista Margareth Dalcolmo, da Fiocruz, disse que está muito preocupada com a decisão de muitas cidades, entre elas São Paulo e Rio de Janeiro, de suspenderem a obrigatoriedade do uso da máscara em ambientes fechados. “Acho que essas medidas foram precipitadas”, afirma, citando o recrudescimento da doença na China e na Coreia do Sul, e a chegada da nova variante Deltacron ao País. “Considero um erro.”

PUBLICIDADE

Para Dalcolmo, é preciso esperar ainda algumas semanas para se ter uma avaliação mais acurada sobre os desdobramentos da epidemia na Ásia. Com a vacinação por aqui já avançada, nada indica a ocorrência de uma nova onda da doença, mesmo com a chegada da Deltacron. “Mas podemos ser surpreendidos”, alerta a especialista. De qualquer forma, defende, é preciso vacinar as pessoas que não receberam ainda a terceira dose e ampliar a vacinação infantil, ainda muito baixa.

Ela criticou duramente a postura do governo brasileiro, que disseminou fake news, informações incorretas e demorou muito para começar o processo de vacinação. Para ela, os problemas contribuíram para o País ter um dos maiores números absolutos de morte pela doença - perdendo apenas para os EUA -, inclusive entre crianças e jovens. A boa surpresa, no entanto, foi a robusta resposta da comunidade científica brasileira. O Brasil foi um dos países que mais publicou estudos sobre a covid-19, a despeito de todas as dificuldades.

“A retórica oficial foi muito nociva ao País, querendo emprenhar, digamos assim, conceitos como a defesa de medicamentos não eficazes, diante de uma população amedrontada, angustiada e empobrecida”, diz. “Por outro lado, hoje, somos o 11º País do mundo em número de publicações científicas sobre a covid-19. Isso é muita coisa.”

Pneumologista Margareth Dalcolmo, da Fiocruz, diz que está muito preocupada com a decisão de muitas cidades de suspenderem a obrigatoriedade do uso da máscara em ambientes fechados Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

Autora do estudo definitivo sobre a ineficácia da cloroquina (anexado á documentação oficial da CPI), responsável pela testagem de outros dois remédios contra a covid-19 (que já se revelaram eficazes), conselheira de primeira hora do então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, Margareth Dalcolmo afirma que esta, definitivamente, não será a última epidemia enfrentada pela geração atual, sobretudo diante do desequilíbrio ecológico e das mudanças climáticas do planeta.

“Se você me perguntar do que eu tenho medo, como eu acho que a vida no planeta vai acabar, eu não citaria uma bomba atômica ou um meteorito. Eu diria que tende a acabar com epidemias, sobretudo agora como o homem favorecendo ecologicamente o surgimento de novas doenças”, sentencia.

Muitas capitais, como Rio e São Paulo, já aboliram o uso de máscaras mesmo em espaços fechados. A senhora acha que essa decisão foi precipitada, diante desse aumento de casos na China e na Coreia do Sul?

Publicidade

Estou muito preocupada com esse afã muito precipitado de tomar medidas administrativas e comportamentais, como retirar a exigência do uso de máscaras em ambientes fechados. Considero um erro. Não é hora de tirar máscara em ambiente fechado. Essa é outra discussão com a qual não deveríamos estar perdendo tempo. A prioridade agora é vacinar criança, convencer os pais da importância da vacina.

Estamos realmente caminhando para o fim da pandemia? O que significa esse recente recrudescimento do número de casos na China? E a chegada da variante Deltacron ao Brasil? Corremos o risco de enfrentar uma nova onda?

Olha, eu não sei. Mas temo que sim, diante do que está acontecendo na China e também na Coreia do Sul. Todo mundo me viu citar a Coreia do Sul o tempo inteiro como exemplo positivo de enfrentamento à pandemia, tanto assim que acabei dando uma entrevista para uma equipe da televisão coreana que veio até aqui para falar comigo. A Coreia do Sul distribui máscaras de boa qualidade para todo mundo e testava muito, até no sinal de trânsito. Mas o que aconteceu foi que eles relaxaram. Vacinaram muito pouco. Xangai fechou hoje (quarta-feira, 16) de manhã, a situação por lá é caótica. Até 80% da população idosa não foi vacinada. Por enquanto, nada indica que a nova variante (Deltacron) seja mais grave ou mais transmissível que as demais. Mas isso é hoje, dia 16 de março. Não sei se daqui a uma semana teremos novos dados. O conhecimento avança muito rapidamente. Temos que aguardar para ver o que vai acontecer na Ásia nas próximas semanas.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

E no Brasil? O que podemos esperar? Como podemos nos preparar?

Não sabemos o que vai acontecer com essa variante nova chegando. Até esse momento, nada indica que teremos uma nova onda, mas podemos ser surpreendidos. Temos que esperar mais umas duas semanas para ver como vai se comportar essa disseminação na Ásia. Enquanto isso, precisamos resgatar as pessoas que não tomaram ainda a terceira dose. Outra situação que nos preocupa é a baixa taxa de vacinação pediátrica, que decorre desse temor que foi passado à população pela retórica oficial. Outra coisa que defendo é o autoteste, acho importante. E não devemos perder tempo com essa discussão sobre se já estamos em uma endemia ou não. Isso é uma bobagem. Quem declara isso é a Organização Mundial de Saúde (OMS), não um Estado ou um país, não é um título honorífico. Sabemos que o Sars-CoV-2 não vai desaparecer das nossas vidas, vai guardar uma certa endemicidade.

Outra situação que nos preocupa é a baixa taxa de vacinação pediátrica, que decorre desse temor que foi passado à população pela retórica oficial

Margareth Dalcolmo, pneumologista e pesquisadora da Fiocruz

E os novos medicamentos ainda não aprovados?

Precisamos aprovar os medicamentos para tratar a doença. Estou conduzindo dois ensaios clínicos de fase 3, mas precisamos ainda de aprovação para progredir e da nacionalização. Esses medicamentos (para formas leves da doença) ainda são muito caros para a nossa realidade. São US$ 600 por cinco dias de tratamento oral. Os resultados são excelentes, tanto do Molnupiravir, da Merck, quanto do Favipiravir, da Fugi. O melhor de todos é o Paxlovid, da Pfizer, que tem a maior taxa de efetividade, 80%, mas também não tem registro por aqui ainda. Outra coisa importante é a aprovação dos medicamentos imunorreguladores para casos graves, de pacientes internados, também sendo testados no Brasil.

Publicidade

A senhora acha que a quarta dose da vacina é realmente necessária? E daqui para frente, vamos ter de nos vacinar todos os anos?

Sim, a quarta dose é uma indicação, a diferença, em termos de proteção, é muito grande. Israel já está fazendo. Precisamos implementar a quarta dose para todo mundo acima dos 18 anos. A partir daí, a doença começa a ir se estiolando, se tornando endêmica. Eventualmente teremos um surto aqui, um cluster ali, mas dificilmente um comportamento epidêmico mais amplo. Sobre a vacinação anual, não creio que precisaremos tomar mais vezes. Eu particularmente acho que não, não vejo por quê. Eventualmente, precisaremos de um novo reforço, mas não perenemente, como no caso da gripe. O vírus influenza é muito diferente, sofre muito mais mutações, têm sempre muitas cepas novas.

Dois anos depois, que balanço a senhora faz da pandemia? Ela seguiu o curso esperado? Surpreendeu de alguma forma?

Desde o início ficou claro para nós, médicos e cientistas, que a situação no Brasil emularia a de países que nos antecederam (na disseminação da doença). Quando a doença chegou aqui, decorridos dois meses, diante das taxas de transmissão, ficou muito claro que seria algo grave, devastador, que desnudaria a imensa desigualdade brasileira. Sabíamos também que nossas duas armas mais poderosas para enfrentar a pandemia eram o distanciamento social e o Sistema Único de Saúde (SUS) -- ainda que subfinanciado, espoliado e com todos os problemas que conhecemos. 

Desde o início também duas coisas nos chocaram, para o bem e para o mal: a enorme capacidade de resposta demonstrada pela comunidade científica brasileira, mesmo com a fuga de cérebros, com o pouco financiamento, com todas as dificuldades enfrentadas pelos órgãos públicos, e a tensão muito grande entre a retórica da comunidade acadêmica e os discursos oficiais. A retórica oficial foi muito nociva ao País, querendo emprenhar, digamos assim, conceitos como a defesa de medicamentos não eficazes, diante de uma população amedrontada, angustiada e empobrecida. Por outro lado, hoje, somos o 11º País do mundo em número de publicações científicas sobre a covid-19. Isso é muita coisa. O principal estudo sobre a ineficácia da cloroquina veio de Manaus. Fizemos testes de fase 3 de várias vacinas. As cientistas sequenciaram o genoma do vírus em quatro dias. Fizemos bastante coisa, com muito pouco apoio governamental.

E sem uma coordenação nacional...

Não tivemos uma coordenação central. E falo isso porque fazia parte do grupo inicial que assessorou Mandetta (o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta) e estava montando uma coordenação centralizada. Desde então, e até hoje, convivemos com uma tensão que não precisava ter existido. Carecemos, desde o início, de uma harmonia técnica, administrativa e científica. 

Publicidade

Outro aspecto rapidamente revelado, e que é novo, foi o surgimento de um novo voluntariado, algo que disse logo na primeira entrevista que concedi: o Brasil precisará de uma participação não apenas pública, mas também da iniciativa privada. Num País com uma concentração de renda tão iníqua, se a iniciativa privada não comparecer, teremos uma tragédia ainda maior. E vimos iniciativas muito interessantes por todo o País. Espero que, passados dois anos, isso se perenize.  Não é possível que termine com a pandemia, que jogou na linha da pobreza, ou abaixo dela, alguns milhões de brasileiros. A iniciativa privada precisa cultivar uma cultura de doação sólida e consistente.

Pneumologista Margareth Dalcolmo, da Fiocruz Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

O Brasil sempre foi um caso de sucesso no que diz respeito à imunização infantil, o que mudou?

O governo tem feito um desserviço enorme no sentido de desacreditar aquilo em que a população brasileira sempre acreditou tanto, a imunização. Os pais sempre tiveram orgulho de apresentar a carteira de vacinação de seus filhos, é uma tradição, vejo isso há décadas, é muito bonito. Mas, infelizmente, isso está sendo posto em risco. A retórica oficial contaminou as famílias, fez muito mal. Se alguém tinha alguma dúvida sobre a eficácia da vacina, essa dúvida já deveria estar dirimida diante do controle epidêmico que estamos vendo ao alcançar o patamar de 80% da população imunizada.

Se alguém tinha alguma dúvida sobre a eficácia da vacina, essa dúvida já deveria estar dirimida diante do controle epidêmico

Margareth Dalcolmo, pneumologista e pesquisadora da Fiocruz

Se for o caso de enfrentarmos uma nova onda da doença, estamos preparados em termos de disponibilidade de vacina?

Sim, o Brasil hoje é autônomo na produção de vacinas. A Fiocruz é capaz de produzir de 25 a 30 milhões de doses por mês, se tivermos uma nova onda. Essa questão da autonomia da vacina é mais um exemplo da permanente contradição em que vivemos nesta pandemia, daquela tensão a que me referi, entre a retórica oficial e o posicionamento da comunidade científica, de vivermos no gume da faca o tempo todo. O País foi palco de vários estudos de fase 3 de imunizantes, a vacina da Pfizer, a Coronavac, a Janssen, a Astrazeneca, todos eles com grande participação de cientistas brasileiros. Mas, a despeito disso, não encomendamos as vacinas, não compramos as vacinas, uma decisão completamente errada, pra dizer o mínimo. Por que fizemos isso? Por que começamos a vacinar atrasados?

Esse atraso contribuiu para o grande número de mortes que registramos?

Certamente. E só começamos a vacinar quando começamos por conta da insistência da produção da Coronavac, que certamente salvou muitas vidas, e da vacina da Fiocruz. Manaus provou de maneira peremptória que não existia a tal da imunidade comunitária. Sete meses depois do pico da pandemia, quando a (variante) Delta chegou, além da desdita, foi aquela tragédia. São exemplos muito dramáticos de coisas que poderiam ter sido evitadas. E não foi por falta de alerta da comunidade científica.

Publicidade

 O Brasil foi um dos países que mais registrou mortos pela covid, perdendo apenas para os Estados Unidos em números absolutos, inclusive na população A que a senhora atribui esse desempenho tão ruim?

Sim, tivemos um número muito alto de mortes inclusive entre a população pediátrica. Entre as crianças, tivemos mais mortes por Covid do que por todas as demais doenças somadas. Esse é o dado a ser apresentado para aqueles que negam a necessidade da vacina para as crianças. Tem muita coisa positiva também, estamos com 80% da população vacinada. Mas isso tudo poderia ter sido alcançado com menos tensão, menos problema, sem necessidade de CPI. Poderíamos ter trabalhado de maneira mais harmônica e mais eficiente. Poderíamos ter começado a vacinar mais cedo, ter uma retórica hegemônica, não termos que ir para a televisão desconstruir informações erradas sobre vacina, cloroquina, ivermectina, todos esses medicamentos inúteis. Quem ganhou com tudo isso?

 

Além do discurso oficial, parece que a adesão de boa parte da classe médica aos medicamentos comprovadamente ineficazes também contribuiu muito para o problema, não?

Sim, sempre que faço um balanço da Covid, cito entre as maiores decepções, além da nociva retórica oficial, o comportamento dos nossos órgãos de classe em defesa de práticas e medicamentos que não funcionavam de modo algum. Me surpreendeu negativamente ver tantos colegas embarcarem nesse discurso, algumas vezes com argumentações elaboradas, mas sem nenhuma chance de sustentar uma discussão científica de alto nível. Diante dessa população angustiada, com medo, empobrecida, vulnerável, se aproveitar desse momento para iludir as pessoas, é algo muito grave e muito triste. (O filósofo) Umberto Eco (1932-2016) já tinha nos alertado, vinte anos atrás, para o papel deseducador das redes sociais, dizendo que seriam uma desgraça, que só serviriam para quem tem capacidade de screening, de separar o joio do trigo. Quem não tivesse, iria engolir como verdade tudo o que está lá.

A ocorrência de uma pandemia mundial era algo preconizado por cientistas há muito tempo. Aparentemente, ninguém levou muito a sério tais alertas. A senhora acha que isso muda daqui para frente? Sobretudo com o potencial agravamento do problema diante do desequilíbrio ecológico e das mudanças climáticas?

Essa não será a última epidemia das nossas vidas de jeito nenhum. O grande aprendizado é que não podemos mais ser apanhados despreparados. (Em um TED Talk, em 2015), Bill Gates já tinha alertado para isso. Se você me perguntar do que eu tenho medo, como eu acho que a vida no planeta vai acabar, eu não citaria uma bomba atômica ou um meteorito. Eu diria que tende a acabar com epidemias, sobretudo agora como o homem favorecendo ecologicamente o surgimento de novas doenças. A Amazônia é um celeiro de coronavírus, tem coronavírus para tudo que é lado. Ou seja, podemos ter uma próxima epidemia nascendo aqui no Brasil. Não podemos tratar o planeta tão mal como estamos tratando. Doenças zoonóticas serão mais comuns por conta de questões culturais particulares, como na China, e também por essa espoliação do planeta. Não podemos estar despreparados. Isso significa termos laboratórios qualificados para diagnósticos rápidos, equipes treinadas para entrar em ação, estrutura logística para distribuição de vacinas e medicamentos, estoques adequados de equipamentos de proteção individual (EPI). Em Nova York vimos profissionais de saúde enrolados em sacos de lixo. Não porque não havia dinheiro para comprar EPIs, mas porque não havia onde comprar.

Publicidade

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.