'Não é o fim do mundo, mas um perigo real', afirma brasileiro que vive em Wuhan

"Vi vídeos das pessoas na praia e pensei: ‘Essas pessoas não viram o que está acontecendo no mundo?’”, relata Rodrigo Duarte

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Por Luiz Henrique Gomes
Atualização:

Vivendo em quarentena há dois meses na cidade onde surgiu o primeiro caso do novo coronavírus, em Wuhan (China), o brasileiro Rodrigo Duarte, de 28 anos, mal se recuperou do susto de ser jogado no olho de um furacão e agora tem que lidar com a preocupação de ver o aumento rápido de doentes de covid-19 no Brasil, onde viveu a maior parte da vida. 

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Se há pouco tempo eram seus familiares e amigos que se preocupavam com ele, agora a situação está invertida. “Eu tenho tentado entrar em contato o máximo possível com a família e os meus amigos para relatar como foi a minha experiência e reforçar que eles precisam ficar em casa para o vírus não se alastrar mais no Brasil. Não é o fim do mundo, mas um perigo real que as pessoas precisam estar alertas e levar a sério”, conta.

As primeiras notícias sobre o coronavírus começaram a chegar no Brasil em meados de janeiro, poucos dias antes de Wuhan entrar em quarentena no dia 22. O País acionou o terceiro e mais elevado nível de alerta do sistema de vigilância epidemiológica no dia 4 de fevereiro e confirmou o primeiro caso no dia 26 do mesmo mês, quando o vírus já havia se espalhado na Europa e as informações sobre o contágio eram conhecidas. A sensação de Rodrigo é que os brasileiros ainda não entenderam a gravidade da situação.

Se há pouco tempo eram seus familiares e amigos que se preocupavam com ele, agora a situação está invertida Foto: Rodrigo Duarte

“Eu tenho a infeliz sensação de que o choque ainda não aconteceu na maioria dos brasileiros. Isso está acontecendo ainda muito lentamente. Eu vi vídeos das pessoas na praia e pensei: ‘Caramba, o que essas pessoas estão fazendo aí? Essas pessoas não viram o que está acontecendo no mundo?’”, relata.

No início, a sensação para os habitantes chineses e estrangeiros da cidade foi semelhante à vivida pelos brasileiros que negligenciam as medidas de distanciamento social impostas pelas autoridades desde o início desta semana. As primeiras notícias sobre o coronavírus começaram a chegar nas redes sociais de Rodrigo no dia 31 de dezembro, através de comunicados oficiais que informavam “um surto de pneumonia”, mas a rotina da cidade de 11 milhões de habitantes, 1 milhão a menos do que São Paulo, permaneceu praticamente a mesma até a quarentena ser anunciada 22 dias depois.

Foi somente no dia em que soube que teria que ficar em casa por tempo indeterminado que Rodrigo sentiu o baque e teve consciência de que algo totalmente novo estava acontecendo. Ele estava “dentro do olho de um furacão com milhares de chineses e um vírus invisível e totalmente desconhecido”. Apesar do retorno de muitos brasileiros, ele escolheu permanecer na cidade por causa da academia de judô que criou no país. “Quando ficamos sabendo do vírus, achamos que usar máscara era o suficiente. Aos poucos foi se construindo informações. Hoje as informações sobre contágio, tratamento mais adequado, cura e taxa de letalidade são mais claras”.

Apesar de continuar fechada, Wuhan não registra novos casos de covid-19 desde a última quinta-feira, 19. Os habitantes da cidade se acostumaram à quarentena e se sentem confiantes de que o pior já passou, mas a data coincide com o aumento recorde das mortes causadas pela doença na Itália e o aumento das confirmações no Brasil. A preocupação de Rodrigo agora é com a situação internacional, principalmente com os familiares brasileiros, e chega a ser maior do que antes. Ele sente que o Brasil está menos preparado e a população não tem total confiança nos governantes, tornando o cumprimento de medidas de distanciamento mais difíceis.

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Se durante o pico do coronavírus na China, o brasileiro ligava uma ou duas vezes por dia para a mãe, que é do grupo de risco da covid-19 por ter mais de 60 anos e sofrer de diabetes, agora as ligações são no mínimo três vezes por dia para relembrar os cuidados. Ela mora em Natal, capital do Rio Grande do Norte, onde seis novos casos foram confirmados em dois dias. No Estado, são nove casos confirmados. 

A cidade tem desabastecimento de álcool e máscaras nos supermercados e farmácias e o pouco disponível tem um aumento de preços exponencial. Por isso, o brasileiro tenta enviar materiais diretamente do país asiático. “Não está fácil mandar individualmente, mas estou tentando.” Ele também tem procurado entrar em contato com o máximo de amigos para alertar que o distanciamento social é o melhor modo de conter os avanços do vírus e dar dicas para enfrentar a quarentena com o máximo de segurança. Esse espírito de solidariedade, conta o brasileiro, aumentou muito depois do surto da doença entre todos os chineses.

Medidas do Estado e solidariedade dos chineses 

Professor de judô para 70 adultos e 40 crianças, Rodrigo decidiu suspender as aulas da academia em que é dono no dia 18 de janeiro e desde então não trabalha. A situação econômica dele e da maioria dos chineses durante a quarentena é suavizada pelo preço baixo dos alimentos essenciais no mercado. “Eu comprei milho por 1 centavo, literalmente. Todos os alimentos estão muito baratos. É quase doação”, afirma.

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Contas de aluguel, planos de celular, água e luz também foram suspensas na China enquanto durar a quarentena. O preço dos insumos como máscaras, luvas e álcool foi taxado para evitar a especulação e a quantidade também foi limitada por pessoa, para evitar situações de desabastecimento e corrida desenfreada por esses materiais, como tem acontecido no Brasil.

Uma mudança na rotina dos chineses foi adotar o método de compras coletivas. “Um quarteirão inteiro se junta para comprar determinado alimento, por exemplo. Vai uma pessoa ao supermercado e compra para todo mundo. Isso faz com que o alimento saia mais barato e torne mais fácil desinfetar, porque você desinfeta tudo de uma vez e para todos. Isso é muito eficiente aqui, ao meu ver”, conta o brasileiro.

Para o Brasil, ele acredita que é preciso medidas aplicadas às situações particulares do país, como o grande número de informais. Nesta semana, o governo federal anunciou planejar um voucher no valor de R$ 200 para os brasileiros que se encontram nessa situação. “Isso é preciso porque se as pessoas passaram necessidade é um perigo enorme, elas vão querer ir para a rua trabalhar. É inaceitável deixar as pessoas sem condições de sobreviver porque pode piorar tudo. Ninguém sabe quão alto o pico no Brasil vai chegar e quanto tempo isso vai levar, então essa medida de suporte financeiro é muito necessária. E é preciso consciência dos empresários, para fazer que as coisas se tornem mais baratas, que eles não pensem no lucro agora.”

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‘Se os brasileiros se atentarem e se esforçarem, vai passar mais rápido’

A quarentena em Wuhan é cumprida com rigor. Nas ruas, só se veem profissionais que trabalham para conter a disseminação do vírus. São pessoas realizando a medição de temperatura, profissionais de saúde, trabalhadores de mercados. “Aqui o pessoal encarou o problema de frente, teve que ser assim”. Rodrigo espera que no Brasil a situação se repita: “Se os brasileiros se atentarem e se esforçarem, vai passar mais rápido. Claro, precisa do Estado para enfrentar, e aqui tivemos muita confiança de que ia ser controlado, em nenhum momento eu duvidei que a China ia controlar isso, que eles iam fazer o que fosse preciso, construir hospital em 10 dias e aplicar o dinheiro necessário para resolver.”

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“Os brasileiros não tem que entrar em pânico, mas combater de frente e não subestimar o vírus. Não pensar 'aqui é um país quente, isso não vai acontecer'. E é preciso substituir o pânico por coragem do que vai ser feito. Se isolem rapidamente porque quanto mais rápido vocês se isolarem, mais rápido vai passar. Se as pessoas não se isolarem completamente, vai continuar se espalhando mais e mais e vira um massacre. Quem puder ficar em casa hoje, é para ficar em casa”, conclui.

Autoridades falam em abertura parcial após quatro dias sem casos

Os quatro dias sem novos casos de coronavírus em Wuhan foi acompanhado de avisos das autoridades sobre uma possível retomada de serviços, como o transporte. Ainda não há uma confirmação de quando e como isso vai ocorrer. A sensação de Rodrigo é de que isso vai ser feito com cautela para observar se a doença vai voltar a circular. Apesar da ausência de casos, a China registrou 46 novos casos de coronavírus neste sábado, 22. Um deles foi de transmissão local e o restante importado (chineses que estavam em outros países).

“A quarentena continua valendo, mas já tem algumas ações sendo pensadas para a abertura. Não sabemos como, nem quando. O temor maior é haver uma abertura agora e os casos começarem a surgir de novo. Por isso, apesar de estar tudo calmo, o governo adota a maior cautela possível e nós aguardamos”, relata.

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