Não é preciso temer se a imunidade à covid-19 não for duradoura

A queda na contagem de anticorpos não é sinal de uma derrota do sistema imunológico diante do coronavírus, nem indica uma dificuldade para o desenvolvimento de uma vacina viável

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Por Akiko Iwasaki e Ruslan Medzhitov
Atualização:

A queda na contagem de anticorpos não é sinal de uma derrota do sistema imunológico diante do coronavírus, nem indica uma dificuldade para o desenvolvimento de uma vacina viável.

Nos dois meses mais recentes, vários estudos científicos foram divulgados - alguns foram revisados pelos pares; outros, não - indicando que a resposta dos anticorpos em pessoas infectadas com o SARS-CoV-2 teve queda significativa em um intervalo de dois meses. A notícia inspirou o temor de um rápido enfraquecimento da imunidade dos pacientes que já tiveram a covid-19, prejudicando as perspectivas para o desenvolvimento de uma vacina eficaz e durável.

Teste rápido usa amostra sanguínea para detectar anticorpos Foto: REUTERS/Adrees Latif

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Mas essas preocupações resultam de um equívoco.

Tanto a imunidade natural do nosso corpo quanto a imunidade adquirida por meio da vacinação servem ao mesmo propósito: inibir um vírus e impedir que este cause uma doença. Mas elas nem sempre funcionam da mesma maneira.

Com isso, a revelação de que os anticorpos naturais de alguns pacientes que tiveram covid-19 estariam em queda não significa muito para a probabilidade de eficácia das vacinas atualmente em fase de desenvolvimento. Nesse caso, a ciência pode ser mais eficaz do que a natureza.

O sistema imunológico humano evoluiu para cumprir duas funções: agilidade e precisão. Com isso, temos dois tipos de imunidade: a imunidade inata, que entra em ação em questão de horas, ou até minutos, após uma infecção; e a imunidade adaptativa, que se desenvolve ao longo de dias e semanas.

Quase todas as células do corpo humano são capazes de detectar uma infecção viral, e quando isso ocorre, elas convocam nossos glóbulos brancos para que mobilizem uma resposta defensiva ao agente infeccioso.

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Quando a resposta do nosso sistema imunológico inato consegue conter o patógeno, a infecção é resolvida rapidamente e, em geral, sem que apresentemos muitos sintomas. Mas, no caso das infecções mais fortes, é o nosso sistema imunológico adaptativo que entra em ação para nos proteger.

O sistema imunológico adaptativo é formado por dois tipos de glóbulos brancos, chamados células T e células B, que detectam detalhes moleculares específicos do vírus em questão e, com base nisso, produzem uma resposta direcionada contra ele.

Um vírus provoca doenças ao entrar nas células do corpo humano e sequestrar seu mecanismo genético, podendo assim se reproduzir indefinidamente: a hospedeira é transformada em uma fábrica viral.

As células T detectam e matam essas células infectadas. As células B produzem os anticorpos, um tipo de proteína que se conecta às partículas virais e impede que entrem nas nossas células; isso impede que o vírus se replique e contém a infecção.

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Então o corpo armazena as células T e B que ajudaram a eliminar a infecção, caso precise delas no futuro para combater o mesmo vírus. Essas chamadas células de memória são os principais agentes da imunidade de longo prazo.

Os anticorpos produzidos em resposta a uma infecção comum pelo coronavírus duram aproximadamente um ano. Mas os anticorpos gerados pela infecção pelo sarampo duram a vida inteira, protegendo para sempre.

Mas, no caso de outros vírus, também ocorre que a contagem de anticorpos no sangue chega ao auge durante a infecção e cai depois que esta foi superada, geralmente em questão de alguns meses: é isso que deixou algumas pessoas preocupadas em relação à covid-19, mas o significado desse fenômeno não é o que parece.

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O fato de a contagem de anticorpos cair após o fim de uma infecção não significa que estão sendo derrotados: essa é uma etapa normal de uma resposta imunológica.

E a queda nos anticorpos não significa uma queda na imunidade: as células B de memória que produziram aqueles anticorpos ainda existem, prontas para produzir novos batalhões de anticorpos se a demanda surgir.

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E é por isso que devemos manter a esperança nas perspectivas de desenvolvimento de uma vacina contra a covid-19.

Uma vacina funciona imitando uma infecção natural, gerando células T e B de memória capazes de proporcionar imunidade duradoura nas pessoas vacinadas. Mas há muitas diferenças importantes entre a imunidade criada pelas vacinas e a imunidade criada por uma infecção natural.

Virtualmente todos os vírus que infectam os humanos contêm no seu genoma instruções para a produção de proteínas que os ajudam a evitar a detecção pelo sistema imunológico inato. O SARS-CoV-2, por exemplo, parece ter um gene dedicado a silenciar o sistema imunológico inato.

Entre os vírus que se tornaram endêmicos nos humanos, alguns também descobriram uma forma de evitar o sistema imunológico adaptativo: o H.I.V.-1 sofre mutações rapidamente; os vírus do herpes usam proteínas capazes de aprisionar e incapacitar os anticorpos.

Felizmente, o SARS-CoV-2 não parece ter aprendido esses truques ainda, indicando que ainda temos a oportunidade de deter sua disseminação e a pandemia se apostarmos em uma abordagem relativamente direta para a vacina.

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As vacinas usam diferentes técnicas: podem partir do material viral morto ou atenuado, ácidos nucleicos ou proteínas recombinantes. Mas todas as vacinas são formadas por dois componentes principais: um antígeno e um adjuvante.

O antígeno é a parte do vírus à qual desejamos que a resposta do sistema imunológico reaja, atacando-a. O adjuvante é um agente que imita a infecção e ajuda a dar início à resposta imunológica.

Uma das belezas das vacinas (e uma de suas maiores vantagens em relação à reação natural do nosso corpo às infecções) é a possibilidade de seus antígenos serem projetados para concentrar a resposta imunológica contra o ponto fraco de um vírus, seja este qual for.

Outra vantagem é que as vacinas permitem diferentes tipos e dosagens de adjuvantes - com ajustes, isso pode ajudar a reforçar e prolongar as respostas imunológicas.

Até certo ponto, a resposta imunológica gerada contra um vírus durante uma infecção natural depende do próprio vírus. Não é o caso das vacinas.

Como muitos vírus iludem o sistema imunológico inato, às vezes as infecções naturais não resultam em uma imunidade duradoura ou robusta. O papilomavírus humano é um deles, motivo pelo qual causa infecções crônicas. A vacina contra o papilomavírus dispara uma resposta de anticorpos muito melhor do que a infecção natural pelo HPV: ela é quase 100% eficaz na prevenção da infecção pelo HPV e suas complicações.

A vacinação não protege apenas contra a infecção e a doença; ela também bloqueia a transmissão viral e, se aplicada de forma suficientemente generalizada, pode conferir a uma população a chamada imunidade de rebanho.

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A proporção de indivíduos em uma determinada população que precisam ter imunidade contra um novo vírus para que o resultado seja a proteção de todo o grupo depende do número básico de reprodução do vírus - em termos gerais, o número médio de pessoas que são infectadas por um indivíduo doente.

No caso do sarampo, altamente contagioso, mais de 90% de uma população devem ser imunizados para garantir a proteção também dos não vacinados. No caso da covid-19, estima-se que essa proporção - ainda não a conhecemos ao certo, como seria de se esperar - seja entre 43% e 66% da população.

Levando em consideração as graves consequências da covid-19 para muitos pacientes mais velhos, e também a imprevisibilidade de seus efeitos e consequências entre os jovens, a única maneira segura de alcançar a imunidade de rebanho é a vacinação. Isso, somado ao fato de o SARS-CoV-2 aparentemente não ter desenvolvido ainda um mecanismo para evitar a detecção pelo nosso sistema imunológico, é razão de sobra para dobrar a aposta nos esforços para encontrar rapidamente uma vacina.

Assim, não é necessário ficarmos alarmados com relatos de uma queda na contagem de anticorpos dos pacientes com covid-19; isso é irrelevante para a perspectiva de se encontrar uma vacina viável.

Devemos em vez disso lembrar que há mais de 165 possíveis vacinas em fase de desenvolvimento e algumas mostram resultados promissores nos testes.

É bom também começar a pensar em como garantir que, uma vez desenvolvida, a vacina seja distribuída de maneira eficaz e igualitária. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

*Dr. Iwasaki e Dr. Medzhitov são professores de imunobiologia na Universidade Yale.

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