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Ninguém mais lembra de quem está na linha de frente, diz fisioterapeuta de UTI covid

Profissional do Instituto Emílio Ribas, Graziella Xavier de Barros atua no atendimento a pacientes com coronavírus desde os primeiros casos, há um ano, e reclama do descaso da população com as medidas de proteção

Foto do author Fabiana Cambricoli
Por Fabiana Cambricoli
Atualização:

SÃO PAULO - Fisioterapeuta hospitalar do SUS há dez anos, Graziella Xavier de Barros, de 38 anos, é uma das milhares de profissionais de saúde que estão na linha de frente de assistência aos pacientes graves com covid-19 desde os primeiros casos da doença no País.

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Neste um ano de pandemia, marcado pelo aniversário do primeiro caso registrado no Brasil, em 25 de fevereiro, ela atendeu centenas de doentes, viu a frequência de óbitos subir nas UTIs, foi contaminada pelo vírus e presenciou a morte de quatro colegas pela doença. 

Funcionária do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, referência no tratamento da covid, e do Hospital Estadual Padre Bento, em Guarulhos, ela dedica 60 horas da sua semana ao atendimento de pacientes com coronavírus. A sobrecarga de trabalho e o sofrimento de tantos pacienes e famílias a fizeram intensificar as sessões de terapia e procurar um psiquiatra, que a diagnosticou com depressão.

Em entrevista ao Estadão sobre o balanço de um ano da pandemia, ela diz que a sensação é de abandono por parte da população, que, cansada da quarentena, se aglomera e desrespeita as medidas de proteção sem pensar no esgotamento de quem está no combate.

"Entendo que a saúde mental de todos foi colocada em teste, mas a empatia com o pessoal da saúde foi diminuindo, foi sendo esquecida, parece que as pessoas não estão mais nem aí mesmo, ninguém lembra da gente. No começo, tinha homenagens, palmas, a gente recebeu até presentes de grandes empresas. Agora, estamos esquecidos. Parece que ninguém está lembrando de que quem está ali na linha de frente", disse. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Fisioterapeuta Graziella Xavier de Barros no Hospital Emilio Ribas Foto: Tiago Queiroz/ Estadão

Muitas pessoas exaltam o trabalho de médicos e enfermeiros, mas nem todos lembram do fisioterapeuta nessa assistência a pacientes com covid. Qual é a importância da fisioterapia para um paciente grave com a doença? Essa é uma pergunta que eu escuto muito: como é o trabalho de um fisioterapeuta dentro de uma UTI? A fisioterapia respiratória é pouco conhecida, mas no hospital a gente faz muito isso. O fisioterapeuta do hospital preconiza a reabilitação do paciente como um todo, então trabalha para verticalizar (colocar sentado ou em pé) o paciente o mais rápido possível porque as funções orgânicas se dão de maneira melhor quando o paciente verticaliza. Junto à equipe médica e de enfermagem, a gente tenta traçar um plano para acordar esse paciente o mais cedo possível, caso ele esteja sedado e entubado, para voltar a dar as funções dele de sentar, comer, se levantar. E a gente foca bastante também na reabilitação cardiorrespiratória. A fisioterapeuta se utiliza de algumas manobras que fazem com que o pulmão fique livre de secreções para evitar que o paciente desenvolva uma pneumonia. Também atuamos no ajuste da ventilação mecânica, que é primordial para os pacientes entubados. O ventilador é um aparelho complexo que demanda ajustes finos. Além disso, com a pandemia, ficou também bem conhecida a posição prona, que é colocar o paciente de bruços. É uma manobra super delicada e complexa, envolve a equipe inteira. E o fisioterapeuta também tem a responsabilidade de auxiliar o posicionamento porque o paciente não pode ter compressão de pontos que podem formar escaras.

Ou seja, são coisas fundamentais para a sobrevivência... Sim, porque o paciente crítico de covid, além de ele ter esse déficit na captação de oxigênio, o pulmão dele está todo inflamado, então a gente está lá limpando o pulmão, ventilando, precisamos checar se a concentração de oxigênio não está nociva para as células do corpo. A gente regula tudo. E além disso, a gente tem que prevenir o máximo possível de perda de função, porque o paciente fica muito deitado, ele começa a perder musculatura, inclusive a musculatura respiratória

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Quando você ouviu falar pela primeira vez do coronavírus, ainda quando estava localizado na China, você imaginava que seria tão grave? Não imaginava. Eu vivi parte da pandemia de H1N1 e, naquela época, nós internávamos um paciente com H1N1 a cada semana ou a cada quatro dias. E era assustador, a gente tinha medo de pegar, mas dava tempo de se planejar e dar uma atenção especial àquele paciente. Quando eu comecei a ouvir falar do vírus lá na China, primeiro torci para que não se espalhasse ou para que chegasse fraco aqui. Em um primeiro momento, eu achei que não chegaria, depois, quando percebi que a Europa estava sendo devastada, comecei a acreditar que chegaria no Brasil e pensei que, se fosse igual na Itália, o Emílio Ribas seria o olho do furacão. Em março, começaram a chegar os primeiros casos e caiu a ficha. Esse comecinho foi duro porque ainda era tudo muito novo sobre a doença. Então, ainda se falava de cloroquina, não sabíamos se podia usar corticoide, anticoagulante. Era tudo muito novo e experimental. E na fisioterapia também. Não sabia como o paciente com covid ia responder a maiores pressões. Hoje a gente tem uma experiência para lidar com o doente, mas no começo foi aterrorizante, fora o medo de pegar e levar para a nossa família. A gente vê todas as doenças aqui, mas a taxa de letalidade dessa doença eu nunca tinha visto, é assustador. 

Qual foi o momento mais difícil da pandemia pra você nesses 12 meses? Eu tive dois momentos muito difíceis, em que eu sentei e chorei, sabe? O primeiro foi quando o Brasil estava batendo a marca de 5 mil mortos e a gente estava tendo alguns pronunciamentos dos nossos governantes. Me lembro que, nesse dia, houve uma declaração muito grosseira do presidente (Jair Bolsonaro, questionado sobre os óbitos, disse ‘E daí?). Nesse dia, eu vi um desses mortos na minha frente, um senhor com covid, que chegou ao hospital com uma saúde geral boa, parecia que ia se recuperar. Mas o pulmão dele piorou em questão de horas, uma piora progressiva, importantíssima, irreversível e aí ele fez uma parada (cardiorrespiratória) e não conseguimos reverter. Olhei e pensei: ‘meu Deus, ele é um dos cinco mil. São muitas pessoas mortas’. Um outro momento muito marcante para mim pessoalmente foi o óbito de uma das nossas médicas. Foram quatro colegas que morreram de covid no Emílio Ribas. Essa médica era uma pessoa muito querida e foi entubada no meu plantão. Ela estava com muita falta de ar, mas estava com medo de ser entubada. Daí eu entrei no leito e conversei com ela, de colega para colega, falei que se ela não recebesse oxigênio por meio artificial, o pulmão dela não ia dar conta. Ela concordou, foi tratada com sucesso e, dias depois, saiu da parte crítica pulmonar. Mas no dia seguinte à extubação dela, quando ela já respirava sozinha, ela teve a formação de um coágulo que também é sequela do vírus. Esse trombo se deslocou, foi para o cérebro e ela teve um AVC muito grave e, dias depois, morreu. Foi muito triste porque eu me lembro de ter dito pra ela para confiar na gente e, claro, nós demos o nosso melhor, mas foi muito chocante. Lidar com a vida de qualquer pessoa já é difícil, imagina a de uma colega. Foram quatro óbitos entre colegas e os quatro foram meus pacientes. É muito duro.

E com tantas perdas próximas, como você lidou com o medo de se contaminar? Na semana seguinte à morte da médica, eu peguei covid. Tive a forma leve, fiquei isolada em casa por 21 dias sozinha, sempre tensa com a possibilidade de piorar. Eu tenho o privilégio de ter acompanhamento psicológico há anos, que eu acho importante. Eu tive que intensificar minha terapia e tive que iniciar também um tratamento com psiquiatra para tomar antidepressivo, porque comecei a me sentir muito ansiosa, muito triste, com muito medo e pânico. Muitos colegas também tiveram que partir para esse caminho. 

Qual é a parte mais cansativa dessa rotina de estar na linha de frente há um ano? É essa questão de lidar com uma única doença. É impressionante como a doença tomou conta de todos os leitos. A realidade de uma UTI costuma ser mais diversa, tem lá um paciente cardiopata, um neurológico, pacientes com HIV. Com a covid, você só vê pacientes com a mesma doença todos os dias e todos muito graves. É pesado, desgastante, é uma coisa que acaba esgotando vocês e é muito triste também. A gente pensa: isso não vai parar nunca? Você trata alguns, eles se recuperam e chegam mais e mais. Eu sinto um certo abandono por parte da população. No início, ela estava bem empenhada a tentar ficar em casa e se preservar. Eu entendo que a saúde mental de todos foi colocada em teste, mas a empatia com o pessoal da saúde foi diminuindo, foi sendo esquecida, parece que as pessoas não estão mais nem aí mesmo, ninguém lembra da gente. No começo, tinha homenagens, palmas, a gente recebeu até presentes de grandes empresas. Agora, estamos esquecidos. Parece que ninguém está lembrando de quem está ali na linha de frente, vendo isso todo dia, sem aguentar mais. E abandono por parte dos nossos gestores, com falhas nos planos de vacinação. Daí a gente fica com essa sensação de estar enxugando gelo. Há um ano vendo as mesmas coisas, as mesmas tragédias, as famílias sendo destruídas, sem poder visitar nem se despedir dos seus parentes. 

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E na pandemia, vocês precisam lidar com a perda mais frequente de pacientes do que antes, não é? Sim. Antes da pandemia, eu tinha um óbito de paciente meu por semana, às vezes até menos. Na pandemia, já cheguei a ver quatro mortes em um único plantão. E por mais que a gente tenha hoje mais conhecimento da doença do que no início, com protocolos, medicações e técnicas, em alguns casos a doença chega com uma violência tamanha que leva um monte de gente. Toda vida que a gente consegue salvar, dá aquele gás para continuar lutando, mas aí alguns têm alta e chegam dez e mais dez e isso não tem fim. A gente fica desolado.

Qual é o maior aprendizado que fica de toda essa situação e o que você gostaria de dizer para a população que hoje esquece dos profissionais da linha de frente? Uma coisa boa que ficou de aprendizado foi que a união faz a força mesmo. A equipe precisou ficar unida no aprendizado sobre a doença, no cuidado com os pacientes e com os colegas que adoeceram. Fiquei muito tocada com isso. É uma doação ímpar, por amor à profissão e ao ser humano, Qualquer pessoa que esteja em uma situação de risco iminente, a tendência é se afastar do perigo, fugir. O profissional de saúde teve que mergulhar de cabeça nesse risco para salvar vidas durante a pandemia. Mas, paralelamente a isso, a gente também percebe o descaso por parte de algumas pessoas. Eu deixaria uma mensagem para a população com um pedido de ajuda. Eu já estou me preparando para uma terceira onda por causa das festas clandestinas de Carnaval. Peço que recuperem aquela energia do começo da pandemia para ficar em casa pelo bem coletivo. É preciso zelar pela saúde própria e dos seus familiares e pela nossa. É um apelo. A gente já está há um ano nisso e não está fácil.

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