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Novo coronavírus mudou a maneira como o mundo faz ciência: juntos

Doença gerou uma colaboração global inédita. Pesquisadores dizem que nunca houve tantos especialistas de tantos países se concentrando ao mesmo tempo e com tanta urgência em um mesmo tópico

Por Matt Apuzzo e David D. Kirkpatrick
Atualização:

Usando memes patrióticos e terminologia militar, o governo Trump e o governo da China começaram a tratar a pesquisa sobre o novo coronavírus como um imperativo nacional, suscitando discussões sobre uma corrida armamentista biotecnológica.

Boa parte dos cientistas do mundo respondeu com uma revirada de olhos coletiva. “Absolutamente ridículo”, disse Jonathan Heeney, pesquisador da Universidade de Cambridge que trabalha em uma vacina contra o coronavírus. “Não é assim que as coisas funcionam”, disse Adrian Hill, chefe do Instituto Jenner, em Oxford, um dos maiores centros acadêmicos em pesquisa de vacinas.

Itália é um dos países mais afetados pelo avanço do novo coronavirus; cientistas compartilham pesquisas a fim de entender melhor a doença Foto: Fabio Bucciarelli/The New York Times

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Embora os líderes políticos tenham fechado as fronteiras nacionais, os cientistas continuam a atravessá-las, gerando uma colaboração global inédita na história. Os pesquisadores dizem que nunca houve tantos especialistas de tantos países se concentrando ao mesmo tempo e com tanta urgência em um mesmo tópico. Quase todas as outras pesquisas foram interrompidas.

Objetivos corriqueiros, como créditos acadêmicos, foram deixados de lado. Os repositórios online disponibilizam estudos meses antes dos periódicos. Os pesquisadores já identificaram e compartilharam centenas de sequências genômicas virais. Foram lançados mais de 200 testes clínicos, mobilizando hospitais e laboratórios de todo o mundo.

“Nunca ouço cientistas - cientistas de verdade, de alta qualidade - falando em termos de nação”, disse Francesco Perrone, que lidera um teste clínico de coronavírus na Itália. “Minha nação, sua nação. Minha língua, sua língua. Minha localização geográfica, sua localização geográfica. É uma coisa muito distante dos verdadeiros cientistas de excelência.”

Por exemplo: em uma manhã recente, cientistas da Universidade de Pittsburgh descobriram que um furão exposto à covid-19 havia apresentado febre alta - um possível avanço para o teste de vacinas em animais. Em circunstâncias comuns, eles teriam começado a escrever um artigo para periódicos acadêmicos.

“Mas sabe de uma coisa? Depois teremos tempo de sobra para publicar artigos”, disse Paul Duprex, virologista que lidera a pesquisa de vacinas na universidade. Em duas horas, disse ele, sua equipe compartilhou as descobertas com cientistas de todo o mundo em uma teleconferência da Organização Mundial da Saúde (OMS). “É bem legal, né? Você corta fora toda a porcaria, por falta de palavra melhor, e começa a fazer parte de uma iniciativa global”.

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Para Donald Trump, o presidente que descaradamente brada “América em primeiro lugar”, Duprex e outros cientistas americanos representam a maior esperança do mundo para uma vacina. “Os Estados Unidos vão cumprir a missão!”, declarou o presidente.

Mas tentar colar o rótulo “Fabricado nos Estados Unidos” em pesquisas científicas é uma tarefa complicada.

O laboratório de Duprex em Pittsburgh está colaborando com o Instituto Pasteur, em Paris, e a empresa austríaca Themis Bioscience. O consórcio recebeu financiamento da Coalition for Epidemic Preparedness Initiative [Coalizão para Iniciativas de Preparação para Epidemias], uma organização norueguesa financiada pela Fundação Bill e Melinda Gates e um grupo de governos, e está conversando com o Instituto Serum, da Índia, um dos maiores fabricantes de vacinas do mundo.

Pesquisadores de vacinas de Oxford recentemente utilizaram resultados de testes em animais compartilhados pelo Laboratório das Montanhas Rochosas do Instituto Nacional de Saúde, em Montana, EUA.

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Ao mesmo tempo, o centro francês de pesquisa em saúde pública Inserm está patrocinando testes clínicos com quatro medicamentos que podem ajudar a tratar pacientes com a covid-19. Os testes estão em andamento na França, com planos de rápida expansão para outros países.

De certa forma, o combate ao coronavírus revela uma comunidade médica que há muito tempo tem escopo internacional. No Hospital Geral de Massachusetts, uma equipe de médicos de Harvard está testando a eficácia do óxido nítrico inalado em pacientes com coronavírus. A pesquisa está sendo realizada em conjunto com o Hospital Xijing na China e alguns outros hospitais no norte da Itália. Os médicos desses centros colaboram há anos.

Vários cientistas disseram que o paralelo mais próximo a este momento talvez seja o pico da epidemia de Aids nos anos 90, quando cientistas e médicos do mundo todo deram as mãos para combater a doença. Mas a tecnologia e o ritmo do compartilhamento de informações dos dias de hoje superam o que era possível fazer três décadas atrás.

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Na prática, os cientistas médicos hoje têm pouca escolha a não ser estudar o coronavírus. A maioria das outras pesquisas de laboratório foi suspensa por causa do distanciamento social, dos fechamentos ou das restrições do trabalho em casa.

A pandemia também está corroendo os sigilos que permeiam a pesquisa médica acadêmica, disse Ryan Carroll, professor de medicina de Harvard que está trabalhando com testes de coronavírus. Pesquisas grandes e exclusivas podem trazer financiamentos, promoções e cargos vitalícios. Por isso, os cientistas costumam trabalhar em segredo, ocultando dados de possíveis concorrentes, disse ele.

“Mas a capacidade de trabalhar em colaboração, deixando de lado seu avanço pessoal na carreira acadêmica, está em alta agora, porque é uma questão de sobrevivência”, disse ele.

Um pequeno exemplo dessa abertura pode ser encontrado nos servidores do medRxiv e do bioRxiv, dois arquivos digitais que compartilham pesquisas acadêmicas antes delas serem avaliadas e publicadas em periódicos acadêmicos. Os arquivos vêm sendo inundados por pesquisas com coronavírus de todo o mundo. Apesar do tom nacionalista estabelecido pelo presidente chinês Xi Jinping, os pesquisadores chineses contribuíram com uma parte significativa da pesquisa sobre coronavírus disponível no arquivo.

Embora as autoridades chinesas de início tenham acobertado o surto e depois o tenham empregado para fins de propaganda, os cientistas chineses vem liderando a pesquisa mundial sobre coronavírus de várias maneiras. Um laboratório chinês tornou público o genoma viral ainda em janeiro, uma divulgação que serviu de base para os exames de coronavírus em todo o mundo. E alguns dos testes clínicos atualmente mais promissores têm suas raízes nas primeiras pesquisas chinesas sobre a doença.

Poucas regiões do mundo foram poupadas. No ano passado, Jamal Ahmadzadeh, epidemiologista da Universidade Urmia, no Irã, alertou que o mundo precisava de um sistema de alerta rápido em resposta à MERS, outra doença causada por coronavírus. Nenhum país estava imune ao risco, escreveu ele. Em um email na semana passada, enquanto o Irã enfrentava um dos piores surtos de coronavírus do mundo, ele escreveu que derrotar o vírus exigia o compartilhamento de informações entre laboratórios, superando as fronteiras.

Até cientistas que trabalham em campos não relacionados às doenças infecciosas foram convocados para o esforço. Perrone, que supervisiona um teste clínico italiano do medicamento imunossupressor tocilizumab, é especialista em câncer. Ele está trabalhando no combate ao coronavírus por causa de sua experiência na condução de testes clínicos para o Instituto Nacional do Câncer, em Nápoles.

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Perrone disse que a pandemia de coronavírus pode deixar a ciência médica mais ágil, mesmo depois que passar a emergência. Dez dias depois que os pesquisadores conceberam o estudo, o processo de aprovação do governo foi concluído em tempo recorde e os médicos começaram a registrar pacientes, disse ele. “Isso deve ser uma lição para o futuro”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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